tag:blogger.com,1999:blog-40980471258201791022023-11-15T08:07:52.235-08:00Uma janela sobre o amorUnknownnoreply@blogger.comBlogger7125tag:blogger.com,1999:blog-4098047125820179102.post-31047338126720107052007-07-28T10:07:00.000-07:002007-07-28T10:19:36.460-07:00Sexo nas escolas - Raquel Lito<div align="justify"><span style="font-size:85%;">Raquel Lito<br />In <em>Sábado</em> nº 155 – 19 Abril 2007 </span></div><span style="font-size:85%;"><br />Excertos<br /></span><br /><br /><div align="justify"><span style="LINE-HEIGHT: 190%"><strong>O convite parte dela</strong> e não pode ser mais explícito: “Amor, vamos para a casa de banho?” Entusiasmado, o miúdo responde que sim, claro, e trancam-se nos sanitários da Escola António Arroio, em Lisboa, mesmo à frente da escadaria do segundo andar. Aí não há discriminação por sexos: tanto entram rapazes como raparigas (e às vezes esquecem-se de fechar a porta); as paredes estão cobertas de grafitis de cores garridas; e há mensagens de forte carga sexual. Também Sara deixa o seu contributo na parede. “Dei aqui uma queca três vezes”, escreve com uma esferográfica, depois da aventura sexual com o namorado, quando tinham ambos 16 anos. “É o sítio reservado onde podemos estar mais à vontade”, explica ela, habituada às brincadeiras proibidas na escola. Sem casa disponível, nem dinheiro para ir a uma pensão, Sara só via saída no liceu. “Sempre é gratuito”, ri-se. E se é certo que tinha receio de ser apanhada em flagrante, o desejo sobrepunha-se a tudo o resto. “Dava uma vontade... O medo deixava de ser importante.”<br />Sara corre riscos e tem noção do erro, mas também sabe que é difícil ser castigada. “Ninguém foi apanhado.” Percebe-se porquê: para 1300 alunos do liceu António Arroio, entre os 16 e os 21 anos, só há 20 vigilantes a funcionar por turnos – número reduzido para controlar o que se passa nas dez casas de banho, muitas delas em sítios desertos. “Isso exigia que os vigilantes estivessem em permanência nos sanitários, o que é impossível. Não temos recursos humanos suficientes”, diz à SÁBADO a vice-presidente do conselho directivo da escola, Benedita Salema, embora desconheça comportamentos sexuais no recinto. “Não há indícios de que isso tenha acontecido, nem recebemos queixas.” </div><div align="justify">As estatísticas contrariam a visão dos professores. Em média, 11 em cada 100 jovens portugueses entre os 16 e os 20 anos diz já ter praticado sexo na escola, alerta o <em>Sex Survey 2005</em>, promovido pela marca de preservativos Durex em 41 países. Portugal fica à frente da Finlândia, França, Alemanha, Grécia e Espanha, que apresentam uns tímidos 6 a 9% no que toca a este tipo de comportamentos. Outro número importante: 64% dos adolescentes iniciam a vida sexual aos 14 anos, segundo o estudo português Aventura Social & Saúde, da Faculdade de Motricidade Humana, terminado em Dezembro e que em breve será incluído nos relatórios da Organização Mundial de Saúde.<br /><br /><strong>A banalização do assunto</strong> nos filmes e na Internet explica o sexo precoce, dizem os especialistas. Talvez por isso, casos como o de Sara deixem de ser excepção nas escolas. “É uma paródia. Eu aproveitava os furos para ter relações”, diz a aluna, agora com 21 anos. De todos os recantos da Secundária António Arroio – e são muitos, porque a área útil é de 10 mil metros quadrados –, elege apenas um para praticar sexo: a casa de banho mista do segundo piso. É curioso: todos os sanitários são mistos, por uma questão prática. “Como os WC estão distantes uns dos outros, os alunos vão às casas de banho mais próximas das aulas”, explica a responsável Benedita Salema. As que ficam ao fundo do corredor costumam ser frequentadas por casais entre os 16 e os 19 anos.<br />Só às 18h o ritmo abranda, quando as funcionárias fazem limpezas às casas de banho. “O facto de serem mistas facilita. Se os auxiliares virem um casal a entrar, não desconfiam”, diz outra aluna. Quando esta rapariga chegou à escola, entrou em choque com “a malta liberal”: ninguém reparava nas roupas e acariciavam-se no recreio. “Até disse ao meu pai: ‘Onde é que me fui meter?’”<br />Mesmo os mais tímidos agora já não se espantam com os gemidos suspeitos nos sanitários. Nas escadas que dão acesso aos balneários também se vêem cenas picantes. “Vi um casal a fazer sexo”, conta Sara.<br />A aluna encara tudo isto com leveza. Das quatro vezes que praticou sexo na casa de banho, nunca levantou suspeitas. E sobre a última experiência, em meados de 2005, tinha então 19 anos, não se recorda bem. Já via as coisas a dobrar, depois de se ter abastecido de cerveja no café da frente. “Estava um bocado tocada”, conta a aluna repetente. Ele também estava “alegre”. Saíram do esconderijo separados, mas Sara teve um percalço no corredor deserto: cruzou-se com um professor. “Perguntou-me o que andava ali a fazer na hora das aulas.” E ela limitou-se a dizer: “Nada, stôr.” Terminado o sexo sem preservativo, foram para as aulas.<br />Com a cerveja, Sara ficou mais desinibida. É típico da idade, como se pode perceber pelo último inquérito de sexualidade juvenil <em>Aventura Social & Saúde</em>. Cerca de 14% dos jovens portugueses sexualmente activos admitem ter consumido álcool e drogas nas relações sexuais (17,1% do sexo masculino; 10,4% do feminino). E a tendência é para subir: em 2002 a percentagem rondava os 12%.<br />Não se sabe se eles estavam bêbados, mas conseguiram escandalizar os colegas e a opinião pública. Quatro alunos entre os 11 e os 13 anos, de uma escola do Louisiana, nos Estados Unidos, tiveram relações na sala de aula, diante da turma, quando o professor se ausentou por 15 minutos. A notícia chegou aos jornais a 27 de Março. Um aluno contou a outro mais velho, este alertou a professora e abriu-se um inquérito disciplinar. Entretanto, os infractores aguardam julgamento no tribunal de menores. Insólito? Nem tanto. Num país onde 20% dos jovens americanos têm sexo na escola, haverá mais casos que nem são notícia.<br /><br /><strong>Em Portugal, as cenas</strong> acontecem com alguma frequência e até há esquemas para evitar flagrantes. Aos 14 anos, uma ex-aluna da Escola EB 2+3 de Sobral de Monte Agraço, próximo de Lisboa, ia sendo apanhada “numa curte” mais ousada, pela empregada da limpeza, na casa de banho. “Se alguém entrava, um de nós colocava-se em cima da sanita. Assim, parecia que só uma pessoa estava no compartimento”, diz Inês, agora com 18 anos. Os encontros fortuitos eram marcados por telemóvel, via SMS, para as 17 h. E, claro, a adrenalina disparava. “Dava a sensação de perigo de sermos apanhados.”<br />Apesar da vigilância apertada e da boa fama da escola, os casais activos sexualmente – entre os 14 e os 17 anos – passavam despercebidos aos funcionários. Aos colegas não. “Ouvia gemidos e saía do WC para não incomodar”, revela Inês. As escapadelas são uma novidade para a presidente do conselho directivo do liceu de Sobral de Monte Agraço. “Nunca tive suspeitas, nem ouvi comentários”, comenta Maria loão Mexia. E alega que os 20 vigilantes fazem rondas pelas oito casas de banho sem horário pré-definido. Controlam 550 alunos de dia, 150 do turno da noite e nunca desconfiaram de sexo.<br /><br /><strong>Em Sobral de Monte Agraço</strong>, eles é que tomavam a iniciativa, recorda Inês. Já noutra escola profissional, na zona oriental de Lisboa, são elas as mais espevitadas. “Come-me!”, desafiou por duas vezes uma aluna de 15 anos, perante um grupo de amigos. O colega, de 18, acatou a ordem: “É para já.”<br />Uma das amigas da adolescente atrevida encontra a explicação em casa. Diz que a culpa é da família: um pai autoritário e uma mãe chata só podiam dar nisso – uma filha rebelde, que pinta o cabelo com a mesma velocidade com que arranja namorados. “Ela tenta seduzir o máximo de rapazes possível e já lhes pediu para terem relações na escola”, conta a colega, farta de se deparar com casos embaraçosos nos sanitários. Também surpreendeu alguns. “Uma vez abri a porta de um compartimento e encontrei uma colega a puxar as calças, o rapaz estava encostado à parede.” Ana perguntou: “O que estavam a fazer?” A resposta da miúda foi o mais desprendida possível: “Nada de jeito!”<br />Ana revirou os olhos e contou o episódio à irmã da colega, também aluna da escola. “Se calhar estavam a brincar”, comentou a irmã, sem dar sinais de inquietação. Mas se calhar devia ficar preocupada, diz Ana, que classifica muitos rapazes como “taradões”. O falatório à volta de quem faz sexo com quem é tema de conversa nas aulas, conta. Por sua vez, ela sente uma atracção pelo jardineiro e sai-se com tiradas do género: “Tu és bom”, “Meu geladinho, despe a camisola.” Só lamenta que o funcionário não lhe dê atenção.<br />Nada disto chega aos gabinetes da direcção da escola. Atónito com os factos revelados pela SÁBADO, o director garante não ter conhecimento: “Até os alertamos quando andam muito agarrados no jardim...” No entanto, promete “um acompanhamento mais rigoroso”. E argumenta que o espaço físico – uma vivenda para 580 alunos dos 15 aos 21 anos – não permite estes comportamentos, por ser pequeno e não ter privacidade. “Há sempre gente a passar. Se soubéssemos, teríamos actuado com o conselho de turma, é inaceitável!”<br />A lei prevê castigos severos, mas raramente são aplicados – porque ninguém vê e ninguém conta. As sanções reforçadas a 12 de Abril em Conselho de Ministros vão da repreensão registada à suspensão até dez dias úteis ou transferência da escola. Nos casos mais graves, o aluno pode ser expulso.<br />Os miúdos não pensam nisto quando têm jogos de risco. Prever as consequências é coisa de velhos, dizem eles. Interessa mais o momento. “A situação, seguramente pouco frequente, ocorre com jovens com pouco autocontrole e impulsividade em escolas desorganizadas”, diz à SÁBADO o psiquiatra Daniel Sampaio, com 15 livros publicados sobre os problemas da adolescência. No entanto, a SÁBADO não teve muita dificuldade em encontrar vários casos. Nas suas consultas, apenas lhe chegaram três ou quatro relatos de jovens nesta situação. “Digo: ‘Não pode haver coito na escola!’”<br />Informação não falta, profissionais especializados idem, mas no acto, os miúdos esquecem-se do preservativo – 16% têm este lapso, segundo as últimas estatísticas portuguesas. A explicação é óbvia. “São comportamentos não premeditados, por certo impulsivos. À pressa e às escondidas, é difícil pensar em sexo protegido”, diz Daniel Sampaio, nada surpreendido com o facto de a casa de banho liderar os esconderijos. “É, apesar de tudo, um local com alguma privacidade.”<br /><br /><strong>Atrás do pavilhão</strong> de um liceu da zona do Grande Porto, a temperatura sobe – e muito. Sem querer, João presenciou um “filme pornográfico”, como o próprio define, às 161140, entre um casal de 16 anos. Ia a caminho da biblioteca quando se deparou com a cena. Seguiu caminho. “Saí logo, mas a imagem não me saía da cabeça, foi nojento. Fiquei com vontade de vomitar. Como é que alguém é capaz de fazer ‘aquilo’ num sítio público?”, pergunta o aluno de 17 anos. João não denunciou os colegas, nem a direcção imagina o que se passa atrás daqueles muros. “Dou aqui aulas há 16 anos e nunca soube de nada”, responde à SÁBADO o vice-presidente do liceu.<br />Os amigos de João só souberam seis meses depois. “Contei aos meus colegas em Maio do ano passado.” Mas a curiosidade no tema é proporcional à ignorância. “Uma colega perguntou-me se o sexo oral era falar de sexo. Fiquei espantado.”<br />Na Escola Poeta Al Berto, em Sines, ninguém gagueja a fazer estas perguntas. A professora de Educação Sexual, Lúcia Ramiro, tem um esquema original para todos levantarem dúvidas à vontade. “Os alunos metem as questões numa caixa, eu levo para casa e respondo em sistema de Powerpoint na aula seguinte.” Quando abre a caixa, é ela quem fica boquiaberta. “Uns perguntam se o pénis tem um osso; outros ficam com medo de urinar a meio da relação.<br />Antes da primeira vez – “que nunca é igual aos filmes”, lamentam –, as carícias íntimas funcionam como uma espécie de estágio. Andreia tinha 14 anos, o namorado 15, e andavam a explorar o corpo há um mês. “Trocávamos carícias atrás do pavilhão e eram muito provocantes, havia mais casais”, conta. Depois veio o sexo em casa dele, “sem carinho nem paixão”.<br />Os vigilantes da Escola EB 2+3 de Vialonga, próximo de Lisboa, bem a avisaram para se moderar nas cenas. A ela e a mais três casais entre os 14 e os 17 anos. “Eu era a mais nova.” Nunca passaram à medida disciplinar, porque Andreia tinha atenuantes: era delegada de turma e aluna de nota 5. “O segurança dava uns berros, mas não passava disso. Os alunos com cadastro é que iam ao conselho directivo.” De vez em quando, o grupo encontrava preservativos no relvado das traseiras. “Provavelmente, era dos que estudavam à noite”, suspeita Andreia.<br />Para Andreia tudo isto era normal, tal como o facto de os miúdos espreitarem as colegas seminuas depois das aulas de Educação Física, quando os vigilantes se afastavam. Numa tarde, ela e o namorado tiveram um encontro secreto nos balneários. “Ele disse: ‘Deixa ver.’ Foi muito rápido porque havia controlo.” A mania de ser rebelde era uma resposta à avó, “beata” assumida, diz, que via o sexo como uma coisa “feia”. Andreia vingou-se a sério: entre os 14 e os 18 anos, contou 12 parceiros sexuais com quem esteve em sítios inesperados: “Na estação de metro, no jardim, no monte...”<br />A má fama da escola de Vialonga atenuou-se nos últimos anos, garante a professorado conselho directivo Amandina Soares. “Os directores de turma acompanham muito os alunos problemáticos.” Ainda assim, há casos de gravidezes indesejadas. “Mas não conheço comportamentos sexuais no recinto.”<br />É natural. Os miúdos tentam ocultar estes problemas dos professores e pedem ajuda às linhas de apoio telefónicas. Uma delas, Sexualidade em Linha (808 22 2003), regista que a maior parte das perguntas tem a ver com gravidez indesejada (825 chamadas e 2006). Muitas miúdas nestas circunstâncias consultam a obstetra Madalena Lourinhol, no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa. “Chegam muito ansiosas e perdem a libido.” Porque no fundo, no fundo, ainda têm um denominador comum às avós: “Para elas um beijo bem dado é melhor que o sexo.”<br />Mas a pressão dos <em>videoclips</em> de conotação erótica – com Shakiras e afins –, as coreografias ousadas, a somar à Internet e às revistas, empurram para a sexualidade. “O crescimento das raparigas é precoce: antes tinham a menstruação aos 12, 13 anos, agora têm aos 10, 11. Não sei explicar o fenómeno”, confessa a sexóloga Cristina Pablo.<br /><br /><strong>Apalpões, gestos ou piadas</strong> obscenas são banais nos liceus. “Cerca de 19,5% dos alunos portugueses dizem já ter sido alvo destes comportamentos e 14,3% assumem que o fizeram aos colegas”, diz a investigadora Susana Carvalhosa, a preparar um doutoramento sobre <em>Bullying na Escola</em> (ou seja, violência psicológica regular e persistente) para a Universidade, de Bergen, na Noruega. Os últimos balanços da PSP vão neste sentido: em 2006, registaram-se 58 casos de ofensas sexuais em recintos escolares, mais 13,7% do que no ano anterior.<br />Mais grave é quando as imagens de teor sexual chegam à Internet – o <em>cyberbullying</em>. Os alunos filmam com o telemóvel as colegas em actos sexuais no recreio ou em balneários. Depois, colocam as imagens na rede. Vídeos que roçam a pornografia, não consentidos pelas vítimas, entre os 12 e os 15 anos, são a nova violência psicológica. Às vítimas, Daniel Sampaio sugere medidas drásticas: “Devem pedir ajuda, denunciar o agressor, ser protegidas e acompanhadas por um psicólogo. Os pais devem apresentar queixa ao conselho directivo.”<br />Num liceu de Espinho, o pior são as ofensas verbais. “Tu, vai é para trás do pavilhão fazer-me um b...”, balbuciou um miúdo de 15 anos, na fila do bar, porque queria ser atendido primeiro. A rapariga corou, saiu do recinto e a auxiliar teve de intervir: “O que é que disseste?” Resposta do miúdo: “Quem é você para me chamar à atenção? Ela até gosta...” Indignada, a auxiliar fez queixa do aluno. Mas também já viu um casal a praticar sexo e ficou calada. “Porque temia represálias. Os alunos são problemáticos”, diz. E fez “muito mal”, critica Daniel Sampaio. A empregada devia ter denunciado o caso e, se as coisas se agravassem, pedir protecção policial.<br />Uma rapariga de 14 anos e um rapaz de 17 estavam a ter relações sexuais num canto do recreio. “Quando os vi, fiquei atrapalhada e fui chamar o porteiro”. Metido ao assunto, o colega interrompeu a brincadeira com um berro. “Ó rapaz, o que estás a fazer?”, gritou, enquanto a auxiliar sussurrava: “Vistam-se, vistam-se! Rápido.” Ela fugiu, ele puxou as boxers e desfez-se em desculpas. “Chega o momento e a gente não pensa”, justificou-se sobre o facto de não usar preservativo. Depois do episódio, a miúda andou a evitar a funcionária durante um ano. Só em 2006 conseguiu enfrentá-la e, claro está, ouviu um sermão. “E se ficasses grávida?”, repreendeu-a a empregada. De facto, o período menstrual atrasou-se e a aluna temia o pior. Felizmente, foi falso alarme. “Entretanto, arranjou outro namorado e pediu-me conselhos.”<br />Estes problemas parecem ficar à margem do Ministério da Educação. Depois de insistentes tentativas para obter um comentário sobre o assunto, o assessor da ministra Maria de Lurdes Rodrigues, Rui Nunes, limita-se a fazer três perguntas à SÁBADO. “Mas porque é que vocês não fazem um artigo sobre atentados ao pudor no autocarro ou no cinema? Não percebo. Têm estatísticas sobre isso? Quantos testemunhos recolheram, mil?”<br /><br /><span style="font-size:85%;">Nota: Os autores dos depoimentos têm nomes fictícios</span> </div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4098047125820179102.post-70348017749991428282007-07-24T00:19:00.000-07:002007-07-24T01:09:38.777-07:00O que aconteceu às crianças? Kay S. Hymowitz<div align="justify"><em>Nova Cidadania II</em>, Número 5, Julho/Setembro 2000<br />S. João do Estoril, Ed. Principia, Pub. Universitárias e Científicas<br /><br />Excertos<br /><br /><br /><span style="LINE-HEIGHT: 190%">Há nove meses, dois rapazes aparentemente banais, oriundos de famílias normais da classe média, entraram no liceu que frequentavam numa zona próspera perto de Denver, dispararam e mataram 12 dos seus colegas assim como a professora, antes de virarem as pistolas contra si próprios. Foi uma fractura na vida contemporânea americana, uma perda definitiva da inocência que levou os pais e os professores a encararem as suas crianças com um sentimento desconhecido, feito de ansiedade e de dúvida. Claro que já tinha havido outros tiroteios em escolas. No entanto, Columbine – cujo nome se instalou rapidamente no léxico – despertou com toda a força um medo latente: apesar de estarmos numa fase de expansão económica sem precedentes, algo de errado poderia estar a acontecer com as crianças da nação.<br />O que perturbou os americanos nos acontecimentos de Columbine foi a combinação da viciosidade extraordinariamente consciente do massacre com a pertença à classe média típica dos seus perpetradores e com o sítio da exacção. Pode-se explicar a violência em escolas dentro das cidades. A pobreza e a delinquência urbana conjugam-se desde os tempos da Londres de Dickens. Aliás, apesar de ninguém o querer admitir publicamente, muitos americanos poderiam praticamente fechar os olhos aos tiroteios de Jonesboro (no Arkansas), ou de West Paducah (no Kentucky). O próprio Mark Twain não ensinou à nação que aquela gente das colinas e das baladas poderia, às vezes, tornar-se um pouco irracional?<br />Mas Columbine foi diferente. Columbine forçou-nos a perguntar se não estaríamos a negar a existência de uma doença no coração da cultura da classe média a que pertence a maioria das crianças americanas. “Onde estavam os pais?”, perguntaram alguns, intrigados; “Como será que dois adolescentes conseguiram reunir um tal arsenal nos seus próprios quartos sem que o pai ou a mãe reparassem nisso?”; “Que género de escola instituímos?” interrogaram-se outros, quando foi dito que os dois protagonistas faziam vídeos e redacções sobre os seus ignóbeis fantasmas no âmbito dos respectivos trabalhos de casa, sem que ninguém ficasse particularmente alarmado com isso.<br />Neste Outono, artigos provenientes de duas fontes invulgares (porque implacavelmente convencionais), o <em>Frontline</em> da PBS e a revista <em>Time</em>, começaram a dar-nos respostas a estas perguntas. Os artigos oferecem – através de uma análise profunda da vida quotidiana das crianças da classe média nas suas interacções com a família e com a escola – uma visão realista das raízes da alienação e da futilidade dos adolescentes que culminaram em Columbine. Completam um retrato devastador dos adultos, que não se mostram negligentes nem opressores no sentido convencional das palavras, mas que, além das casas ostentadoras e de diversões em profusão, não têm nada de substancial a transmitir aos seus filhos. Embora os autores e os realizadores não compreendam inteiramente aquilo que descobriram, o retrato que pintam corrobora a suspeita de que Columbine possa ser o espelho do vazio emocional e espiritual da própria cultura da classe média americana contemporânea, que os adolescentes em crise enchem com os seus fantasmas mais grotescos, geralmente repletos de raiva.<br />Os adultos que aparecem no primeiro e mais importante destes retratos, “As Crianças Perdidas do Condado de Rockdale”, difundido na série <em>Frontline</em> da PBS em Outubro, parecem ter tudo o que se pode oferecer às crianças. Situada a 50 km a leste de Atlanta, Rockdale é, sociologicamente falando, a irmã gémea de Littleton, um subúrbio florescente e próspero – a “colónia com o desenvolvimento mais rápido das história da humanidade”, segundo alguns habitantes entrevistados no programa. Tal como em Littleton, muitos residentes de Rockdale chegaram recentemente à região, e conseguiram uma vida confortável. É um festival de imagens de ruas amplas com transversais perfeitas e mansões a aparecer por todo o lado, com tectos dignos de catedrais e cozinhas espaçosas com bancadas de granito. E, de facto, as mães e os pais que vivem nestas casas perfeitas fazem muito daquilo que nos dizem que os pais modernos deveriam fazer: treinam equipas da Little League, vão de férias com a família, preparam o jantar para as crianças. No entanto, ficam completamente perdidos quando se trata de transformar as suas mansões em lares onde as crianças possam aprender a ter vidas que façam sentido. Desprovidos de crenças fortes, provavelmente privados de experiências significativas que possam transmitir aos filhos, têm no centro das suas vidas um vazio indeterminável que contrabalança exactamente a opulência das suas casas. O título daquele programa <em>Frontline</em> podia perfeitamente ter sido “Os Adultos Perdidos do Condado de Rockdale”.<br />O programa foi motivado pela erupção de casos de sífilis que acabou por levar funcionários dos serviços de saúde a tratar 200 adolescentes. O facto mais notável não era que 200 adolescentes de um grande subúrbio tivessem relações sexuais com parceiros sucessivos. Era a maneira que escolheram para terem tais relações. (...) O sexo em grupo era banal, tal como eram os seus protagonistas de 13 anos de idade. Os miúdos vêem o canal Playboy na TV Cabo e brincam imitando tudo o que vêem. Experimentaram quase todas as combinações de actividade sexual possíveis e imagináveis – vaginal, oral, anal, rapariga com rapariga, vários rapazes com uma só rapariga, ou várias raparigas com um só rapaz (o único tabu sendo a homossexualidade entre rapazes). Durante certas bebedeiras, uma rapariga podia ser “passada à volta” num jogo. Um número significativo de crianças tinha mais de 50 parceiros. Certas crianças praticavam aquilo a que chamavam uma <em>sandwich</em> – enquanto uma rapariga tem sexo oral com um rapaz, é penetrada pela vagina por outro rapaz e pelo ânus ainda por outro.<br />De acordo com os realizadores, foi a profunda solidão daquelas crianças que as levou a procurar uma família de “substituição” na companhia dos seus pares. Ninguém pode negar que aquelas crianças estavam sozinhas. Algumas eram órfãs virtuais de lares desfeitos e que não funcionavam. Outras eram simplesmente filhos de pais a tempo parcial, que estavam ausentes de casa durante grande parte do tempo para poderem proporcionar aos filhos casas luxuosas, carros, telemóveis e roupas das últimas colecções para adolescentes. A maioria das orgias de sexo eram organizadas depois da escola, entre as três e as cinco da tarde, em casas abandonadas pelos adultos, que estavam a trabalhar. Outras vezes, as crianças saíam discretamente de casa depois da meia-noite, sem acordar os pais exaustos.<br />No entanto, torna-se cada vez mais claro que o vazio na vida daquelas crianças não se limita às horas de trabalho dos pais. A solidão que experimentam ultrapassa o simples facto de serem deixadas sozinhas. Os seus pais, mesmo em casa, parecem desligados. Segundo o produtor, um dos problemas reside no facto de que aquelas famílias passam a maioria do tempo coladas ao televisor. (...)<br />A câmara segue um rapaz chamado Kevin nas suas deslocações da cozinha (que tem televisor, como é óbvio) para o seu quarto na casa com piscina da família, onde tem, inexplicavelmente, dois televisores, ambos enormes, e ambos a mudar constantemente de canal durante as entrevistas. De facto, neste programa, os televisores estão quase sempre a funcionar em casa enquanto decorrem as entrevistas, um detalhe que não é típico só desta região. Um estudo da Fundação Kaiser publicado pouco depois da difusão do programa “As Crianças Perdidas do Condado de Rockdale” revela que dois terços das crianças têm um televisor no seu quarto e que 58 por cento dos pais aceitam ter o televisor ligado durante o jantar.<br />No entanto, uma dieta à base de <em>Simpsons</em> e de <em>Dawson Creeks</em> é mais um sintoma do que uma causa das doenças da classe média. A verdade é que – ainda que os realizadores não tenham conseguido apontar o problema – aqueles adultos fugidios livraram-se da tarefa universal que incumbe aos pais: a de encaminhar e de forjar os jovens. E assim fizeram, não por falta de tempo, devido ao trabalho, nem por verem televisão, mas porque não têm as ferramentas culturais necessárias para cumprir tal missão. Sabem que têm de gostar dos filhos; sabem que têm de suprir as suas necessidades e fazem as duas coisas com abundância. Os realizadores são claramente – e com razão – críticos da maneira como esses adultos consideram que os bens materiais representam a soma e a substância da obrigação parental. Mas quando se trata de recursos culturais, daqueles que despertam a consciência moral e as aspirações louváveis das crianças, que as ajudam a desenvolver um forte sentimento sobre si próprias, esses pais mostram-se profundamente empobrecidos. E aqui, os realizadores só podem especular em vão.<br />No entanto, a incapacidade dos realizadores para definirem essa escassez constitui uma parte da história de Rockdale tão importante como as festas de sexo e a epidemia de sífilis, porque reflecte um estado de confusão mais geral quanto ao empobrecimento cultural que vitima os jovens actuais. Um retrato específico, de um pai e da sua filha, demonstra pateticamente que quer os pais, quer a comunicação social andam desorientados. Amy, uma adolescente pálida de voz suave, que sorri timidamente enquanto conta a sua história, teve claramente todos os benefícios de uma infância privilegiada. Vemos excertos de vídeos familiares e álbuns de fotografias feitas por pais maravilhados perante aquela menina de tranças a bater numa bola durante um jogo da Little League, a armar um sorriso com o seu cesto da Páscoa nas mãos e com o seu amoroso vestido domingueiro, aconchegada sobre os joelhos do pai com um sorriso igualmente radioso. De facto, o pai da Amy fez tudo aquilo que os livros dizem que é preciso fazer. (A mãe da Amy recusou ser entrevistada.) Treinou a sua equipa de beisebol; a família passava as férias junta; parece ter toda a razão quando declara: “éramos íntimos”. Mas – acaba por admitir, num momento que parece ser de grande revelação – viam demasiada televisão. “Temos televisores em todas as divisões da casa”, diz ele. “Vejo os meus programas. A minha mulher vê os dela ... a maior parte do tempo que passávamos juntos não estávamos juntos.” Instado, diz, destroçado: “Acho que devíamos ter falado mais.”<br />Será que isto pode explicar que aquela menina activa e amada se tenha tornado numa adolescente tão desesperadamente só que, encorajada por dois rapazes, iniciou uma relação sexual brutal em frente do seu horrorizado sobrinho de três anos, e que se deixou utilizar por “amigos” que ela percebia que apenas gostavam de si “porque tinha carro”? Parece ser aquilo em que temos de acreditar. Noutra cena, uma especialista em saúde conta, com uma frustração muito sentida que, obviamente, se espera que compartilhemos, qual foi a reacção das famílias de Rockdale quando falou da epidemia de sífilis numa reunião pública. Um padre virou-se para ela e exclamou, referindo-se aos pais: “Eles não vêem? Eles não vêem que são eles? Não falam com os filhos!” Esta perspectiva corrobora sem dúvida a sabedoria dominante dos especialistas. Por exemplo, a Fundação Kaiser, juntamente com a Children Now, iniciou uma campanha cujo lema é “Falar com as Crianças sobre Assuntos Sérios”, o que assume que o problema que os adultos enfrentam actualmente é o de não conseguirem “partilhar os seus próprios valores e, sobretudo, criar uma atmosfera de comunicação aberta com os filhos sobre todos os assuntos”. (...) Não interessa, desde que estejam a falar e a expressar os seus “valores”. Falar e partilhar valores mostra que os adultos “tomam conta”.<br />Infelizmente, mais uma vez os realizadores de <em>Frontline</em> levam-nos a concluir que os adultos não falam com os filhos pela mesma razão pela qual os próprios especialistas apenas conseguem transmitir sensaborias. Não acreditam que há valores fortes para partilhar. Estes pais certamente reprovam o sexo em grupo, as doenças transmitidas sexualmente ou, neste caso, matar colegas. Mas beberam na cultura envolvente uma ética de não-ajuizamento, que esvaziou de sentimentos e de convicções as suas crenças nestas matérias. Esta perda de convicção ajuda a explicar o ar triste e insípido de muitas das entrevistas. “Têm de decidir, se vão tomar drogas, se vão ter relações sexuais” diz atonicamente a mãe do Kevin, aquele que vive na casa da piscina. “Posso dar a minha opinião, dizer o que eu sinto. Mas eles têm de decidir por si próprios.” É difícil de imaginar como é que a partilha dos seus valores vai alguma vez fazer o que quer que seja pelo seu filho. No fundo, estes valores não têm seriedade nem verdade. São apenas a sua opinião.<br />As crianças de Rockdale sabem perfeitamente que os seus pais não têm nada para lhes dizer. “Na minha família, faz-se o que se quer. Ninguém pára ninguém”, diz abertamente o Kevin, sem manifestar qualquer rebelião ou arrogância. É verdade, a mãe do Kevin tentou, numa experiência que nunca renovou, ser uma mãe a sério para a irmã mais velha do Kevin. Abdicou disso porque achou que “era mais simples deixá-la fazer o que lhe apetecesse. Damo-nos melhor.” Convencidos de que não existem valores pelos quais valha a pena lutar, os adultos perdidos de Rockdale abandonaram a distinção clássica entre pais e filhos e passaram a ser amigos dos filhos e companheiros de casa. “Somos as melhores amigas do mundo, ou algo parecido”, diz uma rapariga, falando dos pais. “Quer dizer, posso facilmente dizer como vejo as coisas, o que quero fazer, e deixam-me fazer o que quiser.” “Não a vejo realmente como uma mãe”, acrescenta outra rapariga, referindo-se à sua própria mãe. “Toma conta de mim, e tudo, mas considero-a mais como uma amiga.”<br />Quando os adultos se convertem em amigos, a infância fica condenada a desaparecer. A infância não pode existir sem o enquadramento de adultos. As crianças de Rockdale, ainda pequenitas e incansavelmente dinâmicas, perderam o poder de se maravilharem, a espontaneidade e o idealismo tradicionalmente associados à infância. (...)<br />Porque o niilismo – como Columbine parece ter-nos ensinado – é a resposta provável que irão encontrar as crianças cada vez mais numerosas que, actualmente, crescem privadas de qualquer sapiência transmitida sobre as aspirações e os limites da natureza humana. Deixados sós a reflectir sobre a vida, eles tropeçam inevitavelmente em experiências contra as quais não têm qualquer tipo de defesa e que acabarão por deixá-los confusos. Basta pensar no caso da Heather que, quando tinha 12 anos, foi deixada uma semana sozinha pela mãe celibatária que partiu em viagem de negócios. A criança meteu-se no álcool e nas drogas. Um dia acordou e descobriu que tinha sido violada enquanto estava nos copos. “A primeira vez que se tem uma relação sexual, pensa-se que é porque se quer dizer algo importante”, afirma ela, aos 14 anos. “Mas, no fim de contas, a gente repara que não é nada assim. E acaba por não ligar nenhuma.”<br />Nos colegas, até a realidade de uma doença grave não provoca efervescência nenhuma. Quando uma mãe levou a filha à consulta de saúde organizada no condado para detectar sífilis, estava à espera de um resultado negativo. Era positivo. As crianças riram-se e congratularam-se. “Achámos que era engraçado”, explicou uma rapariga. “Ah, apanhaste sífilis?, sabe... era como uma brincadeira de crianças...” A sensibilidade aniquilada daquelas crianças torna-as impermeáveis a qualquer sentimento de horror, a qualquer sentimento de prazer nas suas aventuras sexuais. “No fundo, fazer sexo é uma seca”, declara outra. “Acho que o sexo foi feito para os rapazes porque nós só nos deitamos, e é do tipo: sai daí de cima, o que estás a fazer?”<br />Um mês antes de Columbine, o condado de Rockdale foi alvo de tiroteios noutra escola. Um estudante do segundo ano disparou e feriu seis pessoas na Heritage High School, um liceu frequentado por algumas das crianças que foram entrevistadas no programa <em>Frontline</em>. Disse-se que T. J. Solomon, o autor do crime, era depressivo. Depois de ver “As Crianças Perdidas de Rockdale”, começamos a perceber porquê.<br />Claro que seria simplificar excessivamente a questão limitarmo-nos a afirmar que os pais são os únicos culpados pelas doenças dos filhos nos casos do tipo de Rockdale. Os pais não constituem uma espécie de subcultura com um sistema próprio de crenças e de hábitos; são cidadãos de uma cultura mais vasta, e quando educam os filhos, fazem-no conformando-se às exigências dessa cultura. Na edição de Outubro da revista <em>Time</em>, o artigo de destaque intitulava-se “Uma semana na vida de um liceu: como são realmente as coisas depois de Columbine”. O artigo ilustra a cultura que funciona dentro das nossas instituições de ensino. A revista Time decidiu basear o seu diário no liceu Webster Groves High School, em Webster Groves, no estado do Missouri. Trata-se de uma cidade com aproximadamente 23000 habitantes, situada 15 Km a sudeste de St. Louis, que a Time escolheu por ser uma cidade extremamente típica. (Na verdade, a CBS também tinha escolhido Webster Groves pela mesma razão, num documentário de 1996). De facto, como em Littletown e em Rockdale, é o carácter normal de Webster Groves que torna o artigo tão desconcertante.<br />Tal como no caso dos adultos do condado de Rockdale, os educadores de Webster Groves (...) consideram que a herança cultural que podia transformar os jovens em adultos com consciência moral, estética e intelectualmente motivados é opcional, apenas uma questão de opinião e não de convicções profundamente ancoradas. De facto, os raros estudantes ponderados e ambiciosos de Webster Groves podem optar por ler verdadeira literatura e estudar matemática séria. Mas, por outro lado, os que não estão interessados nisso – ou seja, a grande maioria deles – podem optar por permanecerem tranquilamente incultos. A consequência é que a escola se torna uma creche para adolescentes, um serviço de amas-secas que mantém as crianças fora das ruas. (...)<br />No dia da visita do jornalista da revista Time, a turma estava a analisar uma historieta chamada “A Torta de Batata Doce”. A professora descreve a prova da torta de batata doce, de fiambre da perna, de couve. “O que é que estas coisas têm em comum?” pergunta a professora, desafiando o seu grupo de estudantes de 15 anos. “Não querem saber se aprendemos”, responde astutamente um rapazinho. “O importante é passar.”<br />Poder-se-ia argumentar que, contrariamente aos pais do condado de Rockdale, os educadores de Webster Groves têm uma boa desculpa para a sua demissão. Os responsáveis estaduais pela educação afirmaram considerar que ensinar os alunos era uma tarefa secundária do educador. A sua tarefa principal consistia em erradicar o abandono escolar que converte a criança numa ameaça social. O Estado do Missouri atribui gratificações às escolas que conseguiram reduzir a taxa de abandono. No caso de Webster Groves, isto representava 150 000 dólares, um montante irresistível quando comparado ao défice do liceu: 1,2 milhões de dólares. No entanto, este dinheiro também dá aos alunos a oportunidade de fazerem uma chantagem com os professores. O bónus de frequência, além de condenar os professores a baixarem o nível do currículo – “se prometer não exigir que leiamos obras acima do nono ano, prometemos ficar na escola” é o negócio subjacente – também os incapacita de exigirem disciplina, além de infracções mais perigosas. Os estudantes podem insultar os professores e chegar atrasados sem sofrer consequências; os professores já sabem que a direcção não os pode apoiar muito.<br />A maior parte do corpo docente também já deixou de pedir mais do que 15 minutos de trabalhos de casa por dia. Uma professora calcula que apenas 15 por cento dos alunos fazem os trabalhos de casa. As crianças dizem que estudam entre 10 e 30 minutos, no máximo. (“Aqui estão em segurança e podem aprender durante as aulas, mesmo que não façam os trabalhos de casa”, explica um assistente do director). Os professores também dão poucos trabalhos de casa para que as crianças tenham muito tempo para se dedicarem àquilo que querem fazer prioritariamente: ganhar dinheiro. É comum para um estudante trabalhar 30 ou até 40 horas por semana num snack-bar ou numa loja de vídeos. A finalidade não é pôr dinheiro de lado para a universidade; o dinheiro serve para comprar casacos de cabedal de 400 dólares, e carros<em> cool</em>. Nada na educação deles põe em causa um tal comportamento.<br />Em Webster Groves, como em Rockdale, os adultos – que abdicaram de qualquer assomo de autoridade que, normalmente, investe os que são mais experientes e perspicazes –tentam disfarçar a sua negligência alegando que são amigos e colegas dos seus subordinados. O artigo da revista Time começa com a chegada muito matinal da directora para um treino físico. A sua <em>T-shirt</em> com o Pateta e a sua roupa em geral dão uma boa ideia daquilo que iremos descobrir. Dois professores fazem frequentemente partidas, como aspergir os alunos com pistolas de água do telhado do liceu, uma brincadeira que levou a vizinhança, aterrorizada porque só via as sombras, a chamar a polícia. Na semana em que a revista <em>Time</em> visitou a escola, os dois treparam novamente ao telhado da escola, mas desta vez foi para fazerem baloiçar a cabeça de um manequim-mulher que baptizaram de Headrietta, ao nível da janela duma turma, de tal forma que arrancaram gritos histéricos às estudantes. A revista <em>Time</em> comenta, acerca de um dos dois brincalhões: “É complicado determinar se Yates, professor de Astronomia e de Física, que também preside ao departamento de Ciências, faz realmente parte do corpo docente ou se ainda é uma criança.” Os tremendos esforços de Yates para manter um relacionamento amigável nem sempre funcionam. Os seus alunos continuam a aborrecê-lo e a chamá-lo “<em>asshole</em>”, um comportamento que, segundo a análise autoconfiante de Yates, prova que os alunos estão “à vontade” com ele.<br />Ainda que extrema, a evasão de Yates reflecte a maneira como os adultos actuais se convencem de que estão bem com as crianças. Desde que as crianças permaneçam na escola, desde que a sua auto-estima não fique ameaçada, desde que a relação de amizade adulto-criança pareça relativamente serena, então podem-se convencer de que têm um “bom relacionamento com as crianças.” De facto, os autores de “Uma Semana na Vida” descrevem os educadores de Webster Groves como adultos atentos que concedem tempo extra para os jogos de futebol da escola, que participam em jogos de <em>softball</em> para alunos-professores, que também se disponibilizam para apoiar um adolescente que acaba de perder a mãe, ou outro cujos pais se estão a divorciar.<br />No entanto, nada daquilo consegue preencher o vazio deixado pelos seus erros e, sem dúvida, também pelos erros da maioria dos pais dos seus alunos, nada é feito para que tenham uma visão de uma ordem moral e intelectual coerente. Uma das principais tarefas dos educadores de Webster Groves consiste em gerir a decadência engendrada pela sua própria abdicação. Apesar de a escola não estar equipada com guardas e detectores de metal, a directora, as suas assistentes e ainda um detective privado deambulam pelos corredores da escola com <em>walkie-talkies</em>. Os funcionários mandaram instalar um dispendioso equipamento de detecção no sistema telefónico da escola depois de um alerta à bomba no ano transacto. O corpo docente frequenta seminários de gestão de crises para encontrar respostas para emergências hipotéticas. A escola está atenta às numerosas crianças medicadas e os professores estão atentos àqueles que perdem subitamente o interesse ou cujas notas baixam.<br />Erik Erikson definiu a idade adulta como um período de criatividade, no qual a maturidade alimenta os jovens vulneráveis e os prepara para uma vida independente. As reportagens de <em>Frontline</em> e da revista <em>Time</em> levam a pensar que, em muitas partes dos Estados Unidos, uma tal idade adulta desapareceu. Os adultos não têm estímulos culturais significativos que possam alimentar a imaginação vazia dos filhos, não têm nada que os possa ajudar a ordenar as suas vidas caóticas, informes. Para as crianças da classe média, uma geração mais rica do que qualquer outra na história da humanidade, a situação é lúgubre. Estão à procura do sentido da humanidade, e encontram adultos a olhar fixamente para o chão. O que basta para enlouquecer algumas crianças.<br /><br /><br />Kay S. Hymowitz<br /></div><br /></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4098047125820179102.post-42303636757642116142007-07-24T00:11:00.000-07:002007-07-24T01:09:38.777-07:00As falácias do amor e do sexo<div align="justify"><span style="font-size:85%;">Louis Pauwels<br /><em>Aprendizagem da serenidade</em><br />Lisbo/São Paulo, Verbo, 1979<br />excertos</span><br /><br /><br /><br />Proponho duas regras capitais:<br /><br />lutar contra o abuso da palavra «amor»;<br />lutar contra o abuso do sexo.<br />Sendo a lucidez uma condição da posse de si, aumentaremos ambas em grande medida:<br /><br />1. Não pondo o amor onde ele nada tem que fazer.<br />2. Não pondo o sexo onde ele nada tem que fazer.<br /><br /><span style="line-height: 190%">Estas duas propostas opõem-se à nossa época que emprega exageradamente a palavra «amor», e põe sexo por toda a parte. Mas um homem que tem a preocupação da sua dignidade e da sua liberdade íntimas serve-se da sua época como de tudo o mais neste mundo: escolhe. Aceita da sua época aquilo que o eleva, e rejeita o que o rebaixaria. Ele é contemporâneo, mas com precaução e distância.<br /><br />O homem — ou a mulher — que vê as coisas como elas são considera o fanatismo do amor, tão espalhado nas nossas maneiras de ser (e sobretudo de dizer), como uma imensa mentira. Só há um amor absoluto: aquele que nos levaria a dar, sem a mínima hesitação, a nossa vida.<br />O homem — ou a mulher — que compreendeu isto é objecto de uma profunda conversão. A conversão à linguagem autêntica do coração e dos sentidos. Ele — ou ela — deixa de abusar da palavra «amor».<br />A realidade, a honestidade, a liberdade, instalam-se na nossa vida sentimental quando temos a coragem de substituir a palavra «amor» pelas expressões exactas das nossas inclinações e dos nossos apegos. Que revolução do discurso e, logo, dos costumes, e quantas dores evitadas, se substituíssemos esta palavra oca pelos seus sinónimos plenos! Mágoas e cadeias por se ter chamado amor ao desejo. Duas vidas despedaçadas por terem pronunciado esta grande palavra devoradora quando só se tratava dos sentidos e de simpatia. O medo da solidão e a necessidade de ternura, postos na conta do amor. Dar o nome de amor louco a uma loucura de posse. Confundir o amor com o prazer dos hábitos a dois. E, a partir daqui, as tragédias do ciúme.<br />É verdade que o amor existe. Mas é raro. Tão raro como a santidade ou o génio. Não aviltemos o seu nome.<br />Quem pode dizer: faço-te dádiva de mim? Quem está suficientemente presente a si, para fazer dádiva de si?<br />E, enfim, há apenas um amor puro: querer a felicidade de um ser, quando já não se está preso seja ao que for. Não ter medo de viver nem medo de morrer, não sofrer de qualquer privação, bastar-se a si próprio. E juntar-se a alguém na vida desejando o seu bem. Há apenas um amor sereno: quando já nada nem ninguém pode perturbar a minha serenidade.<br />A literatura diz que o amor se forma independente da nossa vontade. Isso é verdade na inexistência. Mas a existência começa com o não-apego. E aquele que compreendeu isto compreendeu que não há amor sem vontade do amor. Tudo o resto é, de facto, literatura.<br />Vivemos numa sociedade que, por interesse mercantil e rebaixamento do sentido da dignidade, suscita não a liberdade sexual, mas o abuso do sexo. O abuso do sexo é a violação de fronteiras entre os centros vitais do homem: o cérebro, o coração, o sexo. É a mistura monstruosa: o sexo sobe ao coração, o espírito desce para o meio das pernas, todas as energias se confundem degradando-se mutuamente; toda a existência é vivida como um constante alerta de invasões vertiginosas.<br />Se procedermos de modo a que o sexo funcione com a sua energia própria, restituímo-lo à sua dignidade. A virtude não está no medo ou na privação do sexo. Está no sexo reposto no seu lugar. Se restituirmos à sexualidade a sua autonomia, restituímos do mesmo passo a sua dignidade às nossas emoções e aos nossos pensamentos. Trepamos um degrau do ser. Torna-se-nos possível pensar com pensamento e aceder a emoções superiores. Mas é preciso ver que tudo conspira para no-lo impedir. A confusão romântica gerada pela nossa velha cultura. E a «erotização» da sociedade actual. Esta «erotização» não reabilita o Eros no homem. Pelo contrário, ela abandona a energia sexual à pilhagem e reduz as nossas outras energias à escravidão do sexo. </div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4098047125820179102.post-50368071479923815002007-07-05T06:17:00.000-07:002007-07-24T01:09:38.777-07:00* Como viver a dois permanecendo diferentes<span style="font-size:110;"><span style="LINE-HEIGHT: 150%"><br /><strong>Da fusão à diferenciação</strong><br /><br /><br /></span></span><span style="font-size:110;"><span style="LINE-HEIGHT: 150%"><div align="justify"><span style="font-size:110;"><span style="LINE-HEIGHT: 150%"><span style="font-size:110;">— Para se passar do <em>um</em> para o <em>três</em>, será necessário aceitar, em primeiro lugar, a passagem do <em>um</em> para o <em>dois</em>, tendo a ousadia de abandonar a fase idílica da fusão ou simbiose. Essas sequências da vida conjugal traduzem-se, muitas vezes, pela utilização privilegiada das fórmulas “a gente” e “nós” que englobam os cônjuges nesse espaço fechado da ilusão de serem semelhantes.<br /><br />“Gostamos de Mozart.”<br />“Somos felizes por viver juntos.”<br />“Gostaríamos de ter filhos.”<br />“Queremos morar no interior.”<br />“Nós estamos sempre de acordo no que diz respeito ao essencial...”<br /><br />Será que esse “nós” são verdadeiramente autênticos e cúmplices?<br /><br />Não será que um certo número deles são portadores de um risco de amálgama e colusão que ameaça os desejos diferenciados de cada um e que os leva a não serem ouvidos, nem satisfeitos, nem mesmo simplesmente respeitados em unicidade? </div><div align="justify"><br /><br />Muitas vezes, isso acontece perante a maior cegueira dos protagonistas, que colaboram, cada qual à sua maneira, nesse sistema de indiferenciação.<br /><br />Essa fase de fusão apoia-se essencialmente na falta de posicionamento personalizado de um dos parceiros, em benefício da evocação de uma entidade fictícia: “o casal indiferenciado” ou “o casal sintonizado com” a posição dominante de um... sobre o outro.<br /><br />“Estamos sempre de acordo, nunca discutimos; aliás, de que serve discutir quando queremos viver felizes juntos?”<br /><br />Cada parceiro tende a limar as arestas da sua personalidade em função do que supõe ser o desejo do outro. A adaptação mútua leva cada um a amplificar e a reforçar as características ou traços que parecem convir ao outro ou ser valorizados por ele.<br /><br />Inversamente, cada qual terá tendência para atenuar, eliminar, até mesmo dissimular as manifestações ou aspectos percebidos como susceptíveis de desagradar ao outro, ou de estar na origem da colocação em evidência das suas diferenças. É assim que alguns parceiros acabam por se tornar semelhantes nas suas atitudes, físico e linguagem.<br /><br />Cada um dos protagonistas está persuadido de que conhece as possibilidades, desejos e necessidades do outro e de que é possível identificar-se com eles. Cada um faz ou vive em lugar do outro. Renuncia a satisfazer e, até mesmo, a exprimir os seus próprios prazeres ou demandas. Muito rapidamente, sem que os interessados estejam ao corrente, as posições imobilizam-se, instalam-se, estruturam-se sob uma forma repetitiva e, muitas vezes, num único sentido.<br /><br />A ilusão de uma semelhança entre os dois parceiros faz com que a comunicação verbal seja pouco valorizada.<br /><br />“Quanto a nós, compreendemo-nos imediatamente; não temos necessidade de falar.”<br />“Apenas pelo seu aspecto, adivinho o que vai dizer...”<br />“A gente nunca tem problemas de comunicação como acontece com tantos casais; não temos necessidade de falar um com o outro...”<br /><br />Inútil exprimir desejos que, supostamente, serão adivinhados pelo outro! A longo prazo, tais desejos correm o grande risco de não serem satisfeitos, e de, um dia, se manifestarem sob a forma de censuras e acusações porque, justamente, permaneceram durante muito tempo confinados no implícito.<br /><br />Aquele executivo sincero, cortês, terno e dedicado em muitos aspectos à sua companheira, não tem consciência de que passa o tempo a dizer-lhe o que ela deve fazer.<br /><br />Muito cedo na sua relação, comportou-se como quem sabia o que era bom para ela e para si, para eles e para a família da qual era o chefe.<br /><br />“Vamo-nos casar depois de terminar os nossos estudos; poderás trabalhar mesmo tendo filhos, porque haverá alguém para tomar conta deles.<br />É preferível mesmo assim viver no interior, já que temos meios para isso: espero que estejas de acordo!<br />Vamos fazer a mudança no início do ano escolar, porque o posto que me foi oferecido é mais interessante, não te preocupes... Irei à frente para abrir caminho e depois virás ao meu encontro. Tentarei encontrar trabalho para ti e um bom posto num sector ao lado do meu. Vais ver que não haverá problemas… Pensei em tudo...”<br /><br />E, assim, durante doze anos, “não haverá problemas” ou “pensei em tudo” (eram as alcunhas que ela lhe deu alguns anos após o casamento) resolveu efectivamente todos os problemas do casal... sem óbice aparente e com a colaboração aparentemente indefectível da sua mulher.<br /><br />Até ao dia em que ele fez o seguinte anúncio:<br /><br />“Fui escolhido para trabalhar na Coreia, como responsável pelo projecto do TGV; partiremos em Outubro, teremos... de prever... e tu poderás...”<br /><br />Seguia-se uma longa lista de tarefas das quais tinha a responsabilidade e pretendia resolver “sem problemas” para o bem-estar da mulher e da família.<br /><br />Nesse dia, descobriu com estupefacção uma mulher desconhecida que já não entrava no seu sistema relacional e que deu a seguinte resposta:<br /><br />— Talvez pretendas mudar de novo; mas não é a minha intenção, nem a das crianças. Fico em Orleães, sinto-me bem no meu trabalho e nesta cidade, que começa a tornar-se um pouco a minha cidade. As crianças estão a criar uma estabilidade, fizeram relações importantes para elas. Comecei um curso de dança e tenho amigas de quem eu gosto...<br />— Então queres divorciar-te? — gritou ele com uma certa moderação.<br />— Não propriamente divorciar-me, mas somente dizer que, desta vez, não quero mudar. Estou saturada, tenho necessidade de respeitar o meu próprio ritmo!<br />— Isso quer dizer, então, que já não me amas?<br />— Não é isso o que estou a dizer. Estou simplesmente a tentar sublinhar que já não aceito que me digas o que tenho de fazer...<br /><br />Estourou uma crise sem mudanças essenciais.<br /><br />Ele tolerava a decisão da mulher, mas procurava incessantemente desestabilizá-la nas suas posições. Aproveitava todas as ocasiões! Por meio de múltiplas pressões, chantagens ou ameaças, tentava levá-la a voltar ao modo relacional anterior.<br /><br />Quanto a ela, agarrava-se ao seu projecto de vida e conservava a esperança de que ele “compreenderia”, mudaria de opinião e acabaria por renunciar a trabalhar no estrangeiro.<br /><br />Ela chegou até a afirmar: “Tinha a ingenuidade de acreditar que ele viesse a escolher- me.”<br /><br />Aquela crise durou vários anos até chegar a uma ruptura, ao mesmo tempo conflituosa e libertadora para ambos. No entanto, mesmo após o divórcio, ele ainda voltava a telefonar-lhe para continuar a ditar, na secretária electrónica, com todos os pormenores, qual seria o tipo de férias desejáveis ou não para ela... que posto de trabalho deveria aceitar...<br /><br />Esse período da vida relacional de um casal no qual domina a utilização da fórmula “a gente” pode durar anos e, até mesmo, décadas.<br /><br />Num prazo mais ou menos longo, será sancionado pela descoberta mais ou menos brutal ou progressiva de que um dos parceiros não se sente satisfeito com essa forma de indiferenciação e amálgama que o deixa confinado e reduzido.<br /><br />Acabará por rebentar, então, uma crise, muitas vezes, dolorosa, emocionante ou angustiante, quando um dos cônjuges começar a ganhar autonomia, a diferenciar-se, a mostrar-se diferente. Será o início de uma nova etapa da vida conjugal: a do casal diferenciado.<br /><br />Uma outra mulher irá descobrir lentamente, primeiro com amargura e depois de forma positiva, que tinha desejos e projectos bem pessoais. Irá descobrir que permanecer fiel a si mesma não é necessariamente ser infiel ao companheiro.<br /><br />Tal posicionamento mais diferenciado implicará uma concentração maior da pessoa sobre si mesma.<br /><br />Nesse momento, o eixo do casal orienta-se para um dos cônjuges. E se as hemorragias relacionais, as tensões, as rivalidades, as oposições, não os tornarem demasiado frágeis, seguir- se-á um período de melhores partilhas e de uma abertura mais real de um para o outro.<br /><br />Para passar da fase da fusão ou simbiose – que, muitas vezes, caracteriza os primeiros tempos da vida amorosa – para a fase da diferenciação, não basta tomar consciência ou estar vigilante, mas será necessário que cada um se defina de forma concreta e lúcida. Não será fácil correr o risco de se posicionar como portador de desejos, ideias, sentimentos e projectos diferentes das propostas apresentadas pelo outro.<br /><br />No entanto, se aceitarmos considerar que um relacionamento tem duas extremidades e que é vital que cada um se responsabilize pela sua, vamos descobrir que somos nós que produzimos os sentimentos que, por vezes, nos fazem sofrer tanto; além disso, é através deles que tentamos não só exercer uma pressão sobre o nosso companheiro através do sentimento de culpa, desvalorização ou chantagem afectiva, mas também desvalorizar-nos e desqualificar-nos.<br /><br />É raro que essa maneira de ver seja aceite de imediato e facilmente por aquele que vive... as consequências da mudança do outro. Seguem-se, por vezes, reacções arcaicas, até mesmo narcísicas e desproporcionadas, porque o que é ferido ou atingido escapa à consciência imediata daquele que, antes de tudo, vive tal situação como uma injustiça ou sismo imprevisto e incompreensível.<br /><br />O paradoxo relacional decorrente daí é o seguinte: o mais atingido nas suas esferas mais infantis e profundas irá fazer uma acusação exagerada, amarga e sincera... contra o outro.<br /><br />Na maior parte dos actos da vida quotidiana, tudo parece tornar-se um problema. Essa cristalização intensa e repentina das energias defensivas ou de afirmação abre uma fase duplamente conflituante: a de um inter-conflito com o parceiro e a de um intra-conflito no mais profundo de si mesmo. Poderá ser acompanhada pela vontade de desistir, de deixar que o outro tome as decisões ou de voltar a uma fase na qual “apesar de tudo, era mais simples, menos perigoso, mais descontraído”.<br /><br />Além dos pequenos mal-entendidos, prazeres e incidentes ligados à gestão da vida quotidiana, além dos ajustamentos ou confrontos inevitáveis que balizam o início da vida de um casal, a primeira crise fundamental que abalará os alicerces de identidade de cada um encontra a sua origem nesta interrogação: Como passar do “nós” e do “a gente” para um “eu” personalizado? Para alguns, a emergência desse “eu” parece ser de tal forma nova, inadequada e ameaçadora, que será rejeitada, repudiada, desqualificada e, até mesmo, negada.<br /><br />Ela corre o risco de ser vivida como sinal ou prova de abandono, não-amor ou rejeição antecipada por aquele que procura ganhar segurança ao pretender permanecer no “nós” do casal asséptico. O parceiro que pretender manter a fusão e a indiferenciação na relação conjugal não suportará a irrupção desse eu que coloca em questão tantos mitos e obriga a um verdadeiro reposicionamento relacional dos desejos, projectos, hábitos e modos de vida. E isto acontece com ambos.<br /><br />Aquele ou aquela que pretender permanecer no casulo ou perder-se no casal indiferenciado vai resistir e lutar para impedir o casal de ter acesso à fase da diferenciação. Tal passagem encontrará muitos obstáculos pelo caminho. </div><div align="justify"><br /></div><div align="center">********************</div><div align="justify"><br />Se aceito atravessar as duas crises mais difíceis da vida conjugal, a saber:</div><div align="justify"><br />* a possibilidade de passar de um para três (das fórmulas “nós” e “a gente” demasiado fusionais para um “eu” diferenciado do “eu” do outro: Eu + Eu);<br />* a descoberta de que somos sempre três: o outro, eu e o relacionamento que existe entre nós...<br />Então, tenho algumas possibilidades de permanecer numa relação viva, não só com o outro, mas também comigo mesmo.</div><div align="justify"><br /></div><div align="center">********************</div><div align="center"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><strong>Equilíbrio das forças de expansão ou de retraimento</strong></div><div align="justify"><br /><br />As forças de coesão e de dispersão no casal estão intimamente misturadas, próximas e interdependentes umas das outras.<br /><br />O equilíbrio deverá apoiar-se numa dosagem entre forças de coesão e forças de dispersão.<br /><br />Ambas as forças são necessárias e contribuem para alimentar as forças de vida do casal.<br /><br />Uma prevalência demasiado grande das forças de coesão ameaçaria conduzir os cônjuges e o seu relacionamento a uma forma de petrificação ou fossilização.<br /><br />A rigidez mortífera ou mumificada de alguns relacionamentos é trágica porque a vida está ausente delas.<br /><br />Por sua vez, as forças de dispersão ou dissociação, ao mesmo tempo que favorecem a autonomia de cada um dos membros, contribuem para manter o casal vivo e ajudam-no a atravessar as crises associadas à sua evolução. O equilíbrio das forças será reforçado ou enfraquecido conforme forem ou não respeitadas algumas regras de base da higiene relacional.<br /><br />Formulei tais princípios numa declaração dos direitos do homem e da mulher ao amor que, em meu entender, se impõem como uma evidência.</div><div align="center"><br /><br />************<br /><br />De todas as estratégias que os casais utilizam para não terem de enfrentar os seus problemas, ao mesmo tempo que se encaminham para eles por vias distorcidas, aquela que parece ser a mais popular é a ligação extraconjugal. Trata-se de uma tentativa desesperada do casal para sair do impasse que o conduz à beira do desastre ou, até mesmo, ao próprio desastre. </div><div align="center"></div><div align="right"><br /><span style="font-size:85%;">Carl Whitaker e Auguste Napier</span></div><div align="center"></div><div align="center"><br />************<br /><br />Nada é mais maravilhoso e miraculoso do que </div><div align="center">uma relação conjugal na qual cada um dos </div><div align="center">cônjuges encontra espaço para crescer, sentir-se </div><div align="center">inteiro, reconhecido, engrandecido, amplificado pela escuta ou olhar do companheiro, pela sua presença, pela sua confirmação ou pelas suas interrogações! Um espaço no qual cada um experimenta a possibilidade de se exprimir e de ser ouvido! Haverá alguma coisa mais estimulante do que construir tal relacionamento?<br /><br />************</div><div align="justify"><br /><br /><strong>Declaração dos direitos ao amor do homem e da mulher (prolongamento)<br /></strong><br />* Amar-te sem te submeter<br />* Cativar-te sem te prender<br />* Acolher-te sem te reter<br />* Dar-te os meus presentes sem me esvaziar<br />* Sorrir-te e enternecer-me<br />* Ficar encantado e abandonar-me à fluidez do impulso, ao uníssono da partilha, à felicidade de sonhar o futuro<br />* E permanecer, assim, vivo e livre, engrandecido na abertura às possibilidades dos nossos encontros<br />* Sentir-me, assim, reconciliado, unificado, prolongado nos entusiasmos da nossa vida em comum. </div><br /><br /><br /><div align="right">Reflexões sobre o casamento</div></span></span></span></span></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4098047125820179102.post-62685378707246807222007-07-05T06:07:00.000-07:002007-07-24T01:09:38.778-07:00* Mudar o futuro<div align="justify"><span style="font-size:120;"><span style="LINE-HEIGHT: 160%"><span style="font-size:120;"><br /><br /><strong>A responsabilidade sexual</strong><br /><br />Na tradição budista, fala-se da unidade do corpo e do espírito. Tudo o que sucede ao corpo, sucede também ao espírito. A saúde do corpo é a saúde do espírito; a falta de respeito pelo corpo é falta de respeito pelo espírito. Quando sentimos cólera, poder-se-ia dizer que esta se situa ao nível das nossas emoções e não no nosso corpo, mas não é verdade. Quando amamos alguém, queremos estar perto dessa pessoa, mas se sentimos cólera em relação a ela, não queremos tocá-la nem queremos que ela nos toque. Não se pode dizer que o corpo e o espírito estejam separados.<br /><br />Uma relação sexual é um acto de comunhão entre o corpo e o espírito. É um encontro muito importante que não deve ser considerado de forma leviana. Vocês sabem que existem zonas íntimas na vossa alma – recordações, dor, segredos – que não gostam de partilhar a não ser com a pessoa que mais amam, aquela em que mais confiam. Vocês não abrem o coração a qualquer um. Na Cidade Imperial, há um lugar que se chama a “Cidade Proibida”, à qual apenas o imperador e a sua família têm acesso. Existe um lugar semelhante na vossa alma do qual ninguém se aproxima a não ser aquele(a) que vocês mais amam.<br /><br />O mesmo acontece com o nosso corpo. Há lugares do nosso corpo de que não deixamos ninguém aproximar-se, a não ser aqueles que respeitamos e amamos, aqueles em que depositamos total confiança. Quando nos tratam com desenvoltura ou negligência, sem nenhuma ternura, sentimo-nos insultados no nosso corpo e na nossa alma. Alguém que nos considera com respeito, ternura e solicitude, oferece-nos uma comunicação profunda, uma profunda comunhão. É a única forma de não nos sentirmos magoados, explorados ou que abusaram de nós, ainda que ligeiramente. Mas para que tal aconteça, é preciso que o amor e o compromisso sejam verdadeiros. Uma aventura sexual não é amor. O amor é profundo, belo, inteiro. Nas relações sexuais, o respeito é um dos elementos mais importantes. A comunhão sexual deveria ser como um rito, um ritual cumprido com plena consciência, com respeito, atenção e amor. Se existe apenas desejo, não se trata de amor. O amor é muito mais responsável. No amor, há a preocupação com o outro.<br /><br />O verdadeiro amor implica sentido das responsabilidades e a aceitação do outro tal como ele é, com as suas qualidades e as suas fraquezas. Se amarmos apenas o lado bom de uma pessoa, isso não é amor. Devemos aceitar as suas fraquezas e dar provas de paciência, de compreensão e de energia para a ajudar a transformá-las. O amor é <em>maitri</em>, a capacidade de transmitir alegria e felicidade, e <em>karuna</em>, a capacidade de transformar a dor e o sofrimento. Este tipo de amor só pode fazer bem. Não é nem negativo nem destruidor. É seguro e tudo garante. <br /><br />Um “compromisso de curta duração” significa que se pode estar juntos durante alguns dias mas a relação terminará em seguida. Não se pode dizer que seja amor ou que este tipo de relação se baseie no amor. A expressão “compromisso de longa duração” ajuda-nos a compreender a palavra “amor”. No contexto do verdadeiro amor, o compromisso só pode ser de longa duração. “Quero amar-te. Quero ajudar-te. Quero tomar conta de ti. Quero que sejas feliz. Quero contribuir para a tua felicidade. Mas apenas por alguns dias.” Será que isto faz algum sentido?<br /><br />Vocês têm medo de se comprometerem – seja em relação aos princípios, ao vosso companheiro ou a qualquer outra coisa. Vocês querem a liberdade. Mas, enquanto pertencerem a este mundo, lembrem-se de que devem assumir um compromisso de longa duração se querem realmente amar o vosso filho e ajudá-lo na viagem da vida. Vocês não podem dizer: “Já não te amo”. Com um amigo que vos é caro, também assumem um compromisso de longa duração. Vocês precisam dele. Ora, isso é bem mais verdadeiro quando se trata da pessoa que quer partilhar a vossa vida, a vossa alma e o vosso corpo. <br /><br />O amor pode ser uma forma de doença. Tanto no Ocidente como na Ásia, temos a expressão “mal de amor”. O que nos torna doentes é o apego. Este tipo de amor, mesclado de apego, é como uma droga. No início, tudo parece maravilhoso mas, uma vez viciados, nunca mais encontramos paz. Não conseguimos estudar, trabalhar ou dormir. O objecto do nosso amor ocupa todos os nossos pensamentos. Conhecemos o “mal de amor”. Este tipo de doença está ligado à nossa vontade de possuir e de monopolizar. Gostaríamos que o objecto do nosso amor fosse todo nosso e apenas nosso. Trata-se de totalitarismo. Não permitimos que ninguém nos impeça de estar com o nosso bem‑amado. Esta forma de amor é semelhante a uma prisão onde enclausuramos o nosso bem‑amado, causando-lhe, assim, bastante sofrimento. O ser amado vê‑se privado de liberdade – do direito de ser ele próprio e de apreciar a vida. Este tipo de amor não é nem <em>maitri</em> nem <em>karuna</em>; apenas a vontade de utilizar alguém para satisfazer as nossas próprias necessidades pessoais. <br /><br />Nas relações sexuais podem existir feridas. Uma atitude responsável evita essas feridas, a nós mesmos e aos outros. Cremos, frequentemente, que apenas as mulheres podem ser feridas, mas isso acontece igualmente com os homens. É necessário estar muito vigilante, sobretudo nos compromissos de curta duração.<br /><br />Na nossa sociedade, o sentimento de solidão é universal. Não há comunicação entre nós e os outros, mesmo no seio da nossa família, e o nosso sentimento de solidão leva-nos a ter relações sexuais. Acreditamos, ingenuamente, que assim nos sentiremos menos sozinhos, mas isso não é verdade. Se não há comunicação suficiente com o nosso companheiro, a nível do coração e do espírito, uma mera relação sexual apenas alargará o fosso entre nós e destruir‑nos‑á aos dois. Será uma relação tempestuosa e causaremos sofrimentos mútuos. Acreditar que uma relação sexual vai ajudar‑nos a sentir‑nos menos sós é uma forma de superstição. Não caiamos nessa armadilha porque nos sentiremos ainda mais sós depois.<br /><br />A união de dois corpos só poderá ser positiva se houver compreensão e comunhão a nível do coração e do espírito. Mesmo entre marido e mulher, se não houver comunhão a nível do coração e do espírito, a união dos vossos dois corpos apenas vos separará mais.<br /><br />Em vietnamita, existem duas palavras para significar amor: <em>tinh</em> e <em>nghiã</em>, que são muito difíceis de traduzir. Tinh implica uma enorme paixão. <em>Nghiã</em> é uma espécie de continuação de <em>tinh</em>. Em <em>nghiã</em> há mais calma, compreensão e confiança. Vocês estão prontos a fazer sacrifícios para tornar o outro feliz. Não há tanta paixão mas o vosso amor é mais profundo e mais sólido. <em>Nghiã</em> far‑vos‑á ficar juntos por muito tempo. É o resultado das dificuldades e das alegrias partilhadas durante um longo período.<br /><br />Começa-se pela paixão, depois aprende‑se a enfrentar as dificuldades da vida em comum e o vosso amor aprofunda‑se. A paixão diminui mas nghiã não pára de aumentar. <em>Nghiã</em> é um amor mais profundo, com mais sabedoria, mais comunhão entre os seres, mais unidade. Vocês compreendem melhor o vosso companheiro. Os dois tornam‑se uma realidade. <em>Nghiã </em>é como um fruto maduro. Já não contém acidez, apenas doçura.<br /><br />Quando vivemos com alguém, apoiamo‑nos mutuamente. Começamos a compreender as emoções e as dificuldades do outro. Quando o outro mostra que compreende os nossos problemas, as nossas dificuldades e as nossas aspirações profundas, ficamos-lhe reconhecidos por essa compreensão. Logo que nos sentimos compreendidos, deixamos de estar infelizes. A felicidade é, antes de tudo, sentir-se compreendido. “Estou-te reconhecido(a) porque mostraste que me tinhas compreendido. Quando passei dificuldades e fiquei acordado(a) até tarde, de noite, tomaste conta de mim. Mostraste-me que o meu bem‑estar era também o teu bem‑estar. Fizeste o impossível para me ajudar a melhorar. Tomaste conta de mim como mais ninguém no mundo poderia tê-lo feito. Por isso estou-te muito reconhecido(a).”<br /><br />Se um casal fica junto muito tempo “até que os nossos cabelos se tornem brancos e os nossos dentes caiam”, é por causa de <em>nghiã</em> e não de <em>tinh</em>. <em>Tinh</em> é o amor‑paixão. <em>Nghiã</em> é um amor que contém muita compreensão e gratidão.<br /><br />Todo o amor pode começar pela paixão, sobretudo nos jovens. Mas a partir do momento em que duas pessoas vivem juntas, é preciso aprender e praticar o amor de tal forma que o egoísmo – a tendência para a posse – diminua e os elementos da compreensão e da gratidão se instalem pouco a pouco até que o amor os consiga alimentar e proteger. Com <em>nghi</em>ã, vocês estão certos de que o outro vai amar-vos e tomar conta de vós, “até que os vossos cabelos se tornem brancos e os vossos dentes caiam”. <em>Nghiã</em> constrói-se a dois, na vida quotidiana.<br /><br />Por vezes, pensamos amar alguém mas este amor não passa de uma tentativa de satisfazer as nossas necessidades egocêntricas. Talvez não tenhamos olhado com a profundidade necessária para vermos as necessidades do outro, incluindo a sua necessidade de segurança e de se sentir protegido. Se tomarmos consciência disso, veremos que o outro tem necessidade da nossa protecção e que, consequentemente, não podemos considerá-lo um simples objecto do nosso desejo. </div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4098047125820179102.post-20826497510411357172007-07-05T05:53:00.000-07:002007-07-21T07:00:46.333-07:00* Da paixão amorosa... não confundir com o amor apaixonado<div align="justify"><span style="font-size:120;"><span style="LINE-HEIGHT: 160%"><span style="font-size:120;">— E a paixão amorosa, papá, não me disseste nada sobre isso. Eu bem que gostaria de encontrar alguém a quem amasse apaixonadamente...<br /><br />— Sabes, a paixão amorosa não tem nada a ver com o amor, é uma doença de amor. Pelo contrário, amar apaixonadamente é uma qualidade do amor, um movimento intenso em direcção ao outro. Num amor apaixonado há toda a vivência de um amor ardente.<br /><br />— O que é que estás a dizer? Uma doença de amor? Estás fora de moda, papá, todas as minhas amigas sonham viver uma paixão amorosa, só pensam nisso. E, aliás, eu também.<br /><br />— Sim, vocês sonham com isso mas será que sabem pelo que têm de passar? Sabem que a paixão amorosa termina em sofrimento?<br /><br />— Oh, papá! Falas disso como de um drama horrível ou uma catástrofe! Como se fosse a coisa pior que pudesse acontecer a alguém!<br /><br />— Antes de ser um sofrimento, a paixão amorosa é um incêndio, um fogo que devasta e queima tudo: o passado, as lembranças, os valores. Trunca o presente, redu-lo à única experiência que vale a pena ser vivida: a presença do outro. À única realidade que lhe estimula as sensações: a sua ausência cruel. É uma torrente tumultuosa que não reconhece qualquer obstáculo, apenas a curva descendente que a leva a resvalar para o seu próprio esgotamento.<br /><br />— Lês muitos livros, papá, vês muitos filmes sérios, acho que exageras! A paixão é o nível mais elevado do amor, o ‘top’! Quando falo de paixão com as minhas amigas, achamos os nossos pequenos ‘flirts’ engraçados e simpáticos mas sem mais, consideramo-los um pouco insípidos, sensaborões, um tanto ou quanto verdes.<br /><br />— Sim, é verdade que a paixão amorosa parece rebuscada, é idealizada como um fim a atingir. Só que não há necessidade de ir atrás dela, ela cai-nos em cima, envolve-nos, toma-nos por inteiro, despoja-nos para nos deixar, por fim, desvairados, esgotados, ariscos. Trata-se de uma prisão emocional. Há na paixão amorosa sentimentos desmesurados, uma aceleração turbulenta das emoções semelhante a um ciclone interior que leva tudo. Uma vez mais, é preciso encontrar a posição que ocupamos neste ciclone. Quando se é objecto de uma paixão amorosa, por vezes, sentimo-nos lisonjeados no início, sentimo-nos muito importantes, mas rapidamente muito ameaçados porque implicados nos sentimentos do outro, esmagados pelos seus pedidos ou propostas, estimulados pela criatividade destas, mas consternados, a longo prazo, pela sua profusão ou incoerência. Quando uma paixão amorosa nos habita, estamos mesmo no interior do ciclone e a posição não é muito confortável!A paixão amorosa não conhece os limites do tempo nem do espaço. Percorrer 400 km para ver a amada por um momento...<br /><br />— Isso é fixe!<br /><br />— Acordares às 3 da manhã para ouvir dizer que a lua a 65 graus noroeste vai trazer-te o olhar dele e piscar-te o olho por ele. Oferecer-lhe a colecção completa dos discos de Mozart se ele deixou escapar que era o seu compositor preferido ou mandar entregar-lhe 100 kg de maçãs se te pareceu ouvir que este fruto fazia bem à sua saúde ou era recomendado para o seu regime!<br /><br />— Uau! Soberbo! O máximo!<br /><br />— Sim, achas isto simpático; na verdade, pode ser, por vezes, original, mas a paixão amorosa não se contenta em amar: ela adora. Despeja na desmesura, dá na desproporção, tem a loucura dos paroxismos, pelo tudo e pelo nada. Para ela, tudo o que não é paixão, é nada, lixo. Não se poupa, não se esgota mesmo quando se cansa. Renasce constantemente dos seus próprios falhanços a que lança mão como se se tratasse de excitantes desafios a enfrentar. É um totalitarismo totalitário que devora aquele que a traz em si.<br /><br />— Na verdade, vista assim, a tua história não é nada temerária.<br /><br />— A paixão amorosa ‘flirta’ com o real e gosta particularmente dos obstáculos, dos impedimentos e dos dilemas. Alimenta-se mais do impossível que resiste ao ideal de amor que ela procura preservar do que dos possíveis e dos pequenos milagres do real que o amor permite no seu confronto com o quotidiano. O amor-paixão é uma espécie de loucura, a forma banalmente patológica do ideal que afecta o domínio dos sentimentos e infecta as relações instauradas, construídas e alimentadas na base desses sentimentos.<br /><br />— Então aquele que ama com amor-paixão, segundo tu, está condenado, só lhe resta deitar-se a afogar... Já que tem de ser... se tal acontecer, é melhor fazê-lo quanto antes?<br /><br />— Podemos sempre deitar-nos a afogar mais tarde, se o objecto de amor, o homem ou a mulher que amamos, não corresponder aos nossos sentimentos, nos rejeitar ou desaparecer. Mas, entretanto, debruçamo-nos sobre o ser amado. Não podemos, aliás, fazer de outra forma porque somos habitados pela imagem, pelo cheiro ou pela recordação da nossa vivência comum. Neste sentido, a paixão é semelhante a uma droga.<br /><br />— Ah, pois, então, se bem compreendo, podemo-nos drogar com o amor. Não é proibido?<br /><br />— De qualquer forma, muitas vezes causa tantas desgraças quanto as drogas duras! Quando se encarrega o amor-paixão de preencher o sonho de amor e de trazer todas as satisfações, ele comporta todos os perigos relacionados com os excessos possíveis nestas expectativas. Viver no amor-paixão é entreter-se na ilusão do amor todo-poderoso. Contrariamente ao amor vivido no quotidiano que se arrisca a perder vivacidade no contacto com o real, o amor-paixão arrisca-se a perder o contacto com o real. Leva a comportamentos repetitivos e compulsivos ou de limite, que podem apresentar-se sob a forma de toxicodependência ou alienação. Aquele que traz em si uma paixão amorosa está não só dependente do outro, mas sobretudo dos seus próprios sentimentos. Põe toda a vida ao serviço dos próprios sentimentos, faça o outro o que fizer. No amor-paixão, o que domina é a invasão do sentimento que ocupa todo o espaço interior. Depois da sua passagem, como depois de um furacão ou de um tornado, não resta nada. Uma concha vazia. Um ser desamparado à espera... mas sempre habitado por forças prestes a despertar.<br /><br />— Então não se é feliz quando se vive na paixão?<br /><br />— A paixão não está realmente destinada aos que aspiram a ser felizes. Ela impõe‑se, é como um cancro cujas células proliferam até matar tudo o que não serve a paixão.<br /><br />— Queres meter-me medo, papá?<br /><br />— Oh, não. Não quero meter-te medo, nem tentar dissuadir-te, porque, de qualquer forma, não tenho nenhum poder de acção ou de impedimento sobre tal sentimento! Apenas quero recordar-te que não estou a inventar nada. A palavra «paixão» vem do latim «patior» que significa sofrer. E também quero dizer-te, mais simplesmente, que penso que é um belo projecto de vida dar-se a si próprio os meios para escapar à submissão que a paixão impõe. Pessoalmente, prefiro o amor à paixão.<br /><br />— Então o teu coração não balança entre os dois?<br /><br />— Mesmo se a paixão for sedutora e der a sensação de que a eternidade se pode viver num instante, trata-se de uma perturbação demasiado condenada, que não se domestica, porque a paixão é absoluta e contém forças de destruição incontroláveis. </span></span></span></div><p><span style="font-size:120;"><span style="LINE-HEIGHT: 160%"><span style="font-size:120;"><span style="font-size:100%;"><em></em></span></span></span></span> </p><p align="right"><span style="font-size:120;"><span style="LINE-HEIGHT: 160%"><span style="font-size:120;"><span style="font-size:100%;"><em>Uma janela sobre o amor</em></span></p><div align="justify"><br /><br /><br /></div><p align="justify"></p></span></span></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4098047125820179102.post-9313064141508156392007-07-05T05:39:00.000-07:002007-07-24T01:09:48.716-07:00* Como se faz para que o amor não morra?<span style="font-size:120;"><span style="LINE-HEIGHT: 160%"><span style="font-size:105;"><div align="justify"><br />Era uma vez sempre a mesma menina que questionava o pai sem cessar.<br />— Diz-me, papá, podes explicar-me? O amor é o quê?<br />E ele continuava, enganava-se, retomava, tentava uma vez mais responder, esclarecer, apaziguar...<br />— Bem, o amor é um estado maravilhoso. Sabes, é algo ao mesmo tempo simples e complicado! É uma emoção formidável, preciosa e frágil. É como um tesouro fabuloso, uma riqueza rara em que toquei, por vezes, com a ponta do coração, dos olhos, dos dedos, mas à qual não tive realmente acesso. Este tesouro, sentia-o às vezes bem próximo, acessível, mas outras vezes sucedia que ele se ocultava, se escondia ou me escapava quando eu o quereria ter retido, guardado por muito tempo. Algumas vezes, é ele que me visita e então invade-me, habita-me, transborda por todo o lado.<br />— Não compreendo nada do que dizes, papá. O que é o amor na nossa vida?<br />— Bom, é também um sentimento. Mas um sentimento verdadeiro, que perdura, não apenas uma emoção nem o sentimento de um momento, uma paixoneta, um namorisco ou um entusiasmo que se contenta em passar. Quando tens este sentimento em ti, tens vontade de viver com toda a gana, sentes-te bem. Sim, quando gostas de alguém, o sinal que não te engana é que tens vontade de ser bom, de ser excepcional para com ele. Tens vontade de partilhar o melhor de ti... e, sobretudo, de inventar os meios de crescer na tua própria vida. E, aliás, encontras imensas ideias para tal quando amas e te sentes amado. Sentes-te feliz! Deves ter, por vezes, conhecido tais correntes, movimentos ou perturbações em ti, não?<br />— Sim, mas isso não dura e depois nunca corre bem. Eu gosto do António e ele gosta da Céline e eu não estou feliz. Afinal, o que é estar apaixonado? Sim, eu sei, já me falaste disso, mas era antes. Agora quero escutar mais um pouco!Desta vez não te pergunto o que é o amor mas como se pode reconhecer o bom amor?<br />— Penso que existem amores com origens bem diferentes. Às vezes, tomamos por amor formas de amar que são sucedâneos ou falsificações do amor: são amores que chamo de necessidade, idealizados, de carência. Amores que desembocam em formas possessivas, amores passionais que nos tornam loucos por vezes, amores de desejo que apenas se vivem na violência. E depois, há também amores que se sucedem em diferentes épocas da nossa vida, que mudam ou adormecem, e outros que são feridos ou se estragam...<br />— Então, quando o amor é ferido e desaparece, deve magoar muito, mesmo muito!<br />— Não é o amor que magoa nem o seu desaparecimento, mas o medo. Claro que há a ferida, o sofrimento, por vezes, o vexame, a tristeza, a pena de nos encontrarmos como nus e sós com as nossas feridas no tempo do desamor. Mas existe sobretudo o medo de já não sermos amados ou amáveis, de não valermos nada, de já não sermos reconhecidos, de ficarmos sós, de sermos abandonados, de já não sabermos amar...<br />— Tenho muitas vezes medos em mim. Quer isto dizer que o amor desapareceu?<br />— Tu e eu, como muitos outros, temos muitos medos, velhos como a humanidade. Os medos são antigos, mesmo ancestrais. Desde tempos imemoriais que estão habituados e sabem lidar com os homens e os seus filhos. Mas nós podemos aprender a não os deixar levar a melhor, a não os cultivar, a não os alimentar em nós...<br />— Isso não é verdade! Não se pode dar ordens aos medos, eu já tentei: eles ficam sempre lá ou então voltam sempre, mesmo quando finjo esquecê-los.<br />— É verdade que não se consegue esquecê-los. Estás a ver, eu, quanto aos medos, aquilo que me ajudou foi compreender que, por detrás de cada medo há um desejo. De cada vez que soube reconhecer o desejo que se escondia por detrás do meu medo, tornei-me mais desperto e por isso, menos fraco, menos bloqueado, menos paralisado face aos meus medos, menos à mercê deles ou por eles inferiorizado!<br />— Papá, como se faz então para que o amor não morra?<br />— Não sei. Isso, na verdade, não sei e, aliás, pergunto-me se há efectivamente uma solução, uma receita ou instruções! Confesso que há uma parte de mistério no amor, uma parte inatingível que se me escapa. A única explicação que posso dar-te, nesta altura, é que se o amor é algo de vivo é porque tem uma vida própria. O que caracteriza a vida é o facto de evoluir, mudar de qualidade, de sentido, o facto de se descobrir e de se mostrar renovada a cada instante. Penso que seria necessário aprender-se muito cedo – por que não na escola? – que o amor é algo de vivo, logo, perecível e imprevisível e deve ser amado, cuidado, para que viva o mais possível!<br />— Seria então preciso que nos ensinassem a amar!<br />— Sim, de certa forma, ensinar-nos também a gostar realmente de nós. Ensinar-nos as paisagens, as fontes, os rios, as colinas e os caminhos do amor para o outro. No meu caso, e na minha própria história, nunca encontrei ninguém que me ensinasse. Nunca ninguém pensou nisso: nem na escola, nem na minha família. Ninguém me ensinou a cuidar dos sentimentos que tinha. Deixaram-me acreditar, como a muitas crianças, que um amor era eterno, assim, por natureza... Que bastava amar e ser amado e tudo correria bem. Não aconteceu nada assim comigo... No entanto, acreditei nisso, mas as minhas certezas não foram suficientes. Caí em todas as armadilhas, em todos os erros, em todas as possíveis faltas de jeito.<br />— Tinhas assim tanta falta de jeito?<br />— Oh, mais do que podes imaginar! Desajeitado e ao mesmo tempo cheio de certezas erróneas.<br />— Queres dizer que acreditavas em coisas falsas? Como quando eu acreditava que o Pai Natal não podia existir porque descobri que eram vocês que compravam os presentes mas queria continuar a acreditar que ele viria, apesar de tudo, ajudar-vos a colocá-los na chaminé!<br />— Comecei a livrar-me das minhas certezas quando em vez de fazer a guerra ao outro, acusando-o de não me amar suficientemente ou de me amar demasiado, tomei consciência de que me competia cuidar do amor que tinha em mim pelo outro.<br />— E porque é que o amor deve fazer sofrer?<br />— Não nos faz sofrer sistematicamente, mas pode levar-nos a situações sem saída ou fazer-nos perder em labirintos. É que, muitas vezes, acreditamos possuir o amor e esquecemos que somos apenas os seus depositários, os receptáculos e também os emissores. Queremos captá-lo, retê-lo, guardá-lo, cativando-o ou controlando-o, e, sobretudo, queremos procurar reter ou guardar aquele ou aquela que nos dá o prazer de conhecer este estado amoroso. O amor é como uma bela flor, um pássaro, que queremos guardar num vaso, numa gaiola, que queremos cativar, domesticar ou domar. Os sofrimentos na relação amorosa são os gritos e as lágrimas do amor que grita por ser maltratado. É que é preciso muita liberdade, autonomia, independência, maturidade e responsabilidade para poder amar como o amor merece...<br /><br /></div><div align="center">*</div><div align="justify"><br />Assim terminou nesse dia esta partilha labiríntica sobre a dificuldade de dizer o que é o amor. Esgotado, sonhador, fiquei acordado uma grande parte da noite, pensando como no meu tempo, ou seja, no tempo da minha infância, tais partilhas teriam sido impossíveis, inimagináveis, fechadas para sempre nas crenças e certezas educativas dos meus pais que, censurando o facto de terem sido crianças, não se teriam, por um só instante, apercebido de que o meu irmão e eu poderíamos ter muito cedo perguntas sobre o amor...<br />Pensando de novo em todas estas nostalgias acumuladas em redor das minhas errâncias amorosas. Sonhando que o amor se assemelha a um bebé prematuro demasiado cedo lançado na vida. Cuidar do amor está longe de ser óbvio para muitos. Resta-nos então todo o tempo que quisermos para o maltratar!... </div><div align="justify"><br /></div><div align="right"><em>Uma janela sobre o amor</em></div><br /></span></span></span>Unknownnoreply@blogger.com0