terça-feira, 24 de julho de 2007

O que aconteceu às crianças? Kay S. Hymowitz

Nova Cidadania II, Número 5, Julho/Setembro 2000
S. João do Estoril, Ed. Principia, Pub. Universitárias e Científicas

Excertos


Há nove meses, dois rapazes aparentemente banais, oriundos de famílias normais da classe média, entraram no liceu que frequentavam numa zona próspera perto de Denver, dispararam e mataram 12 dos seus colegas assim como a professora, antes de virarem as pistolas contra si próprios. Foi uma fractura na vida contemporânea americana, uma perda definitiva da inocência que levou os pais e os professores a encararem as suas crianças com um sentimento desconhecido, feito de ansiedade e de dúvida. Claro que já tinha havido outros tiroteios em escolas. No entanto, Columbine – cujo nome se instalou rapidamente no léxico – despertou com toda a força um medo latente: apesar de estarmos numa fase de expansão económica sem precedentes, algo de errado poderia estar a acontecer com as crianças da nação.
O que perturbou os americanos nos acontecimentos de Columbine foi a combinação da viciosidade extraordinariamente consciente do massacre com a pertença à classe média típica dos seus perpetradores e com o sítio da exacção. Pode-se explicar a violência em escolas dentro das cidades. A pobreza e a delinquência urbana conjugam-se desde os tempos da Londres de Dickens. Aliás, apesar de ninguém o querer admitir publicamente, muitos americanos poderiam praticamente fechar os olhos aos tiroteios de Jonesboro (no Arkansas), ou de West Paducah (no Kentucky). O próprio Mark Twain não ensinou à nação que aquela gente das colinas e das baladas poderia, às vezes, tornar-se um pouco irracional?
Mas Columbine foi diferente. Columbine forçou-nos a perguntar se não estaríamos a negar a existência de uma doença no coração da cultura da classe média a que pertence a maioria das crianças americanas. “Onde estavam os pais?”, perguntaram alguns, intrigados; “Como será que dois adolescentes conseguiram reunir um tal arsenal nos seus próprios quartos sem que o pai ou a mãe reparassem nisso?”; “Que género de escola instituímos?” interrogaram-se outros, quando foi dito que os dois protagonistas faziam vídeos e redacções sobre os seus ignóbeis fantasmas no âmbito dos respectivos trabalhos de casa, sem que ninguém ficasse particularmente alarmado com isso.
Neste Outono, artigos provenientes de duas fontes invulgares (porque implacavelmente convencionais), o Frontline da PBS e a revista Time, começaram a dar-nos respostas a estas perguntas. Os artigos oferecem – através de uma análise profunda da vida quotidiana das crianças da classe média nas suas interacções com a família e com a escola – uma visão realista das raízes da alienação e da futilidade dos adolescentes que culminaram em Columbine. Completam um retrato devastador dos adultos, que não se mostram negligentes nem opressores no sentido convencional das palavras, mas que, além das casas ostentadoras e de diversões em profusão, não têm nada de substancial a transmitir aos seus filhos. Embora os autores e os realizadores não compreendam inteiramente aquilo que descobriram, o retrato que pintam corrobora a suspeita de que Columbine possa ser o espelho do vazio emocional e espiritual da própria cultura da classe média americana contemporânea, que os adolescentes em crise enchem com os seus fantasmas mais grotescos, geralmente repletos de raiva.
Os adultos que aparecem no primeiro e mais importante destes retratos, “As Crianças Perdidas do Condado de Rockdale”, difundido na série Frontline da PBS em Outubro, parecem ter tudo o que se pode oferecer às crianças. Situada a 50 km a leste de Atlanta, Rockdale é, sociologicamente falando, a irmã gémea de Littleton, um subúrbio florescente e próspero – a “colónia com o desenvolvimento mais rápido das história da humanidade”, segundo alguns habitantes entrevistados no programa. Tal como em Littleton, muitos residentes de Rockdale chegaram recentemente à região, e conseguiram uma vida confortável. É um festival de imagens de ruas amplas com transversais perfeitas e mansões a aparecer por todo o lado, com tectos dignos de catedrais e cozinhas espaçosas com bancadas de granito. E, de facto, as mães e os pais que vivem nestas casas perfeitas fazem muito daquilo que nos dizem que os pais modernos deveriam fazer: treinam equipas da Little League, vão de férias com a família, preparam o jantar para as crianças. No entanto, ficam completamente perdidos quando se trata de transformar as suas mansões em lares onde as crianças possam aprender a ter vidas que façam sentido. Desprovidos de crenças fortes, provavelmente privados de experiências significativas que possam transmitir aos filhos, têm no centro das suas vidas um vazio indeterminável que contrabalança exactamente a opulência das suas casas. O título daquele programa Frontline podia perfeitamente ter sido “Os Adultos Perdidos do Condado de Rockdale”.
O programa foi motivado pela erupção de casos de sífilis que acabou por levar funcionários dos serviços de saúde a tratar 200 adolescentes. O facto mais notável não era que 200 adolescentes de um grande subúrbio tivessem relações sexuais com parceiros sucessivos. Era a maneira que escolheram para terem tais relações. (...) O sexo em grupo era banal, tal como eram os seus protagonistas de 13 anos de idade. Os miúdos vêem o canal Playboy na TV Cabo e brincam imitando tudo o que vêem. Experimentaram quase todas as combinações de actividade sexual possíveis e imagináveis – vaginal, oral, anal, rapariga com rapariga, vários rapazes com uma só rapariga, ou várias raparigas com um só rapaz (o único tabu sendo a homossexualidade entre rapazes). Durante certas bebedeiras, uma rapariga podia ser “passada à volta” num jogo. Um número significativo de crianças tinha mais de 50 parceiros. Certas crianças praticavam aquilo a que chamavam uma sandwich – enquanto uma rapariga tem sexo oral com um rapaz, é penetrada pela vagina por outro rapaz e pelo ânus ainda por outro.
De acordo com os realizadores, foi a profunda solidão daquelas crianças que as levou a procurar uma família de “substituição” na companhia dos seus pares. Ninguém pode negar que aquelas crianças estavam sozinhas. Algumas eram órfãs virtuais de lares desfeitos e que não funcionavam. Outras eram simplesmente filhos de pais a tempo parcial, que estavam ausentes de casa durante grande parte do tempo para poderem proporcionar aos filhos casas luxuosas, carros, telemóveis e roupas das últimas colecções para adolescentes. A maioria das orgias de sexo eram organizadas depois da escola, entre as três e as cinco da tarde, em casas abandonadas pelos adultos, que estavam a trabalhar. Outras vezes, as crianças saíam discretamente de casa depois da meia-noite, sem acordar os pais exaustos.
No entanto, torna-se cada vez mais claro que o vazio na vida daquelas crianças não se limita às horas de trabalho dos pais. A solidão que experimentam ultrapassa o simples facto de serem deixadas sozinhas. Os seus pais, mesmo em casa, parecem desligados. Segundo o produtor, um dos problemas reside no facto de que aquelas famílias passam a maioria do tempo coladas ao televisor. (...)
A câmara segue um rapaz chamado Kevin nas suas deslocações da cozinha (que tem televisor, como é óbvio) para o seu quarto na casa com piscina da família, onde tem, inexplicavelmente, dois televisores, ambos enormes, e ambos a mudar constantemente de canal durante as entrevistas. De facto, neste programa, os televisores estão quase sempre a funcionar em casa enquanto decorrem as entrevistas, um detalhe que não é típico só desta região. Um estudo da Fundação Kaiser publicado pouco depois da difusão do programa “As Crianças Perdidas do Condado de Rockdale” revela que dois terços das crianças têm um televisor no seu quarto e que 58 por cento dos pais aceitam ter o televisor ligado durante o jantar.
No entanto, uma dieta à base de Simpsons e de Dawson Creeks é mais um sintoma do que uma causa das doenças da classe média. A verdade é que – ainda que os realizadores não tenham conseguido apontar o problema – aqueles adultos fugidios livraram-se da tarefa universal que incumbe aos pais: a de encaminhar e de forjar os jovens. E assim fizeram, não por falta de tempo, devido ao trabalho, nem por verem televisão, mas porque não têm as ferramentas culturais necessárias para cumprir tal missão. Sabem que têm de gostar dos filhos; sabem que têm de suprir as suas necessidades e fazem as duas coisas com abundância. Os realizadores são claramente – e com razão – críticos da maneira como esses adultos consideram que os bens materiais representam a soma e a substância da obrigação parental. Mas quando se trata de recursos culturais, daqueles que despertam a consciência moral e as aspirações louváveis das crianças, que as ajudam a desenvolver um forte sentimento sobre si próprias, esses pais mostram-se profundamente empobrecidos. E aqui, os realizadores só podem especular em vão.
No entanto, a incapacidade dos realizadores para definirem essa escassez constitui uma parte da história de Rockdale tão importante como as festas de sexo e a epidemia de sífilis, porque reflecte um estado de confusão mais geral quanto ao empobrecimento cultural que vitima os jovens actuais. Um retrato específico, de um pai e da sua filha, demonstra pateticamente que quer os pais, quer a comunicação social andam desorientados. Amy, uma adolescente pálida de voz suave, que sorri timidamente enquanto conta a sua história, teve claramente todos os benefícios de uma infância privilegiada. Vemos excertos de vídeos familiares e álbuns de fotografias feitas por pais maravilhados perante aquela menina de tranças a bater numa bola durante um jogo da Little League, a armar um sorriso com o seu cesto da Páscoa nas mãos e com o seu amoroso vestido domingueiro, aconchegada sobre os joelhos do pai com um sorriso igualmente radioso. De facto, o pai da Amy fez tudo aquilo que os livros dizem que é preciso fazer. (A mãe da Amy recusou ser entrevistada.) Treinou a sua equipa de beisebol; a família passava as férias junta; parece ter toda a razão quando declara: “éramos íntimos”. Mas – acaba por admitir, num momento que parece ser de grande revelação – viam demasiada televisão. “Temos televisores em todas as divisões da casa”, diz ele. “Vejo os meus programas. A minha mulher vê os dela ... a maior parte do tempo que passávamos juntos não estávamos juntos.” Instado, diz, destroçado: “Acho que devíamos ter falado mais.”
Será que isto pode explicar que aquela menina activa e amada se tenha tornado numa adolescente tão desesperadamente só que, encorajada por dois rapazes, iniciou uma relação sexual brutal em frente do seu horrorizado sobrinho de três anos, e que se deixou utilizar por “amigos” que ela percebia que apenas gostavam de si “porque tinha carro”? Parece ser aquilo em que temos de acreditar. Noutra cena, uma especialista em saúde conta, com uma frustração muito sentida que, obviamente, se espera que compartilhemos, qual foi a reacção das famílias de Rockdale quando falou da epidemia de sífilis numa reunião pública. Um padre virou-se para ela e exclamou, referindo-se aos pais: “Eles não vêem? Eles não vêem que são eles? Não falam com os filhos!” Esta perspectiva corrobora sem dúvida a sabedoria dominante dos especialistas. Por exemplo, a Fundação Kaiser, juntamente com a Children Now, iniciou uma campanha cujo lema é “Falar com as Crianças sobre Assuntos Sérios”, o que assume que o problema que os adultos enfrentam actualmente é o de não conseguirem “partilhar os seus próprios valores e, sobretudo, criar uma atmosfera de comunicação aberta com os filhos sobre todos os assuntos”. (...) Não interessa, desde que estejam a falar e a expressar os seus “valores”. Falar e partilhar valores mostra que os adultos “tomam conta”.
Infelizmente, mais uma vez os realizadores de Frontline levam-nos a concluir que os adultos não falam com os filhos pela mesma razão pela qual os próprios especialistas apenas conseguem transmitir sensaborias. Não acreditam que há valores fortes para partilhar. Estes pais certamente reprovam o sexo em grupo, as doenças transmitidas sexualmente ou, neste caso, matar colegas. Mas beberam na cultura envolvente uma ética de não-ajuizamento, que esvaziou de sentimentos e de convicções as suas crenças nestas matérias. Esta perda de convicção ajuda a explicar o ar triste e insípido de muitas das entrevistas. “Têm de decidir, se vão tomar drogas, se vão ter relações sexuais” diz atonicamente a mãe do Kevin, aquele que vive na casa da piscina. “Posso dar a minha opinião, dizer o que eu sinto. Mas eles têm de decidir por si próprios.” É difícil de imaginar como é que a partilha dos seus valores vai alguma vez fazer o que quer que seja pelo seu filho. No fundo, estes valores não têm seriedade nem verdade. São apenas a sua opinião.
As crianças de Rockdale sabem perfeitamente que os seus pais não têm nada para lhes dizer. “Na minha família, faz-se o que se quer. Ninguém pára ninguém”, diz abertamente o Kevin, sem manifestar qualquer rebelião ou arrogância. É verdade, a mãe do Kevin tentou, numa experiência que nunca renovou, ser uma mãe a sério para a irmã mais velha do Kevin. Abdicou disso porque achou que “era mais simples deixá-la fazer o que lhe apetecesse. Damo-nos melhor.” Convencidos de que não existem valores pelos quais valha a pena lutar, os adultos perdidos de Rockdale abandonaram a distinção clássica entre pais e filhos e passaram a ser amigos dos filhos e companheiros de casa. “Somos as melhores amigas do mundo, ou algo parecido”, diz uma rapariga, falando dos pais. “Quer dizer, posso facilmente dizer como vejo as coisas, o que quero fazer, e deixam-me fazer o que quiser.” “Não a vejo realmente como uma mãe”, acrescenta outra rapariga, referindo-se à sua própria mãe. “Toma conta de mim, e tudo, mas considero-a mais como uma amiga.”
Quando os adultos se convertem em amigos, a infância fica condenada a desaparecer. A infância não pode existir sem o enquadramento de adultos. As crianças de Rockdale, ainda pequenitas e incansavelmente dinâmicas, perderam o poder de se maravilharem, a espontaneidade e o idealismo tradicionalmente associados à infância. (...)
Porque o niilismo – como Columbine parece ter-nos ensinado – é a resposta provável que irão encontrar as crianças cada vez mais numerosas que, actualmente, crescem privadas de qualquer sapiência transmitida sobre as aspirações e os limites da natureza humana. Deixados sós a reflectir sobre a vida, eles tropeçam inevitavelmente em experiências contra as quais não têm qualquer tipo de defesa e que acabarão por deixá-los confusos. Basta pensar no caso da Heather que, quando tinha 12 anos, foi deixada uma semana sozinha pela mãe celibatária que partiu em viagem de negócios. A criança meteu-se no álcool e nas drogas. Um dia acordou e descobriu que tinha sido violada enquanto estava nos copos. “A primeira vez que se tem uma relação sexual, pensa-se que é porque se quer dizer algo importante”, afirma ela, aos 14 anos. “Mas, no fim de contas, a gente repara que não é nada assim. E acaba por não ligar nenhuma.”
Nos colegas, até a realidade de uma doença grave não provoca efervescência nenhuma. Quando uma mãe levou a filha à consulta de saúde organizada no condado para detectar sífilis, estava à espera de um resultado negativo. Era positivo. As crianças riram-se e congratularam-se. “Achámos que era engraçado”, explicou uma rapariga. “Ah, apanhaste sífilis?, sabe... era como uma brincadeira de crianças...” A sensibilidade aniquilada daquelas crianças torna-as impermeáveis a qualquer sentimento de horror, a qualquer sentimento de prazer nas suas aventuras sexuais. “No fundo, fazer sexo é uma seca”, declara outra. “Acho que o sexo foi feito para os rapazes porque nós só nos deitamos, e é do tipo: sai daí de cima, o que estás a fazer?”
Um mês antes de Columbine, o condado de Rockdale foi alvo de tiroteios noutra escola. Um estudante do segundo ano disparou e feriu seis pessoas na Heritage High School, um liceu frequentado por algumas das crianças que foram entrevistadas no programa Frontline. Disse-se que T. J. Solomon, o autor do crime, era depressivo. Depois de ver “As Crianças Perdidas de Rockdale”, começamos a perceber porquê.
Claro que seria simplificar excessivamente a questão limitarmo-nos a afirmar que os pais são os únicos culpados pelas doenças dos filhos nos casos do tipo de Rockdale. Os pais não constituem uma espécie de subcultura com um sistema próprio de crenças e de hábitos; são cidadãos de uma cultura mais vasta, e quando educam os filhos, fazem-no conformando-se às exigências dessa cultura. Na edição de Outubro da revista Time, o artigo de destaque intitulava-se “Uma semana na vida de um liceu: como são realmente as coisas depois de Columbine”. O artigo ilustra a cultura que funciona dentro das nossas instituições de ensino. A revista Time decidiu basear o seu diário no liceu Webster Groves High School, em Webster Groves, no estado do Missouri. Trata-se de uma cidade com aproximadamente 23000 habitantes, situada 15 Km a sudeste de St. Louis, que a Time escolheu por ser uma cidade extremamente típica. (Na verdade, a CBS também tinha escolhido Webster Groves pela mesma razão, num documentário de 1996). De facto, como em Littletown e em Rockdale, é o carácter normal de Webster Groves que torna o artigo tão desconcertante.
Tal como no caso dos adultos do condado de Rockdale, os educadores de Webster Groves (...) consideram que a herança cultural que podia transformar os jovens em adultos com consciência moral, estética e intelectualmente motivados é opcional, apenas uma questão de opinião e não de convicções profundamente ancoradas. De facto, os raros estudantes ponderados e ambiciosos de Webster Groves podem optar por ler verdadeira literatura e estudar matemática séria. Mas, por outro lado, os que não estão interessados nisso – ou seja, a grande maioria deles – podem optar por permanecerem tranquilamente incultos. A consequência é que a escola se torna uma creche para adolescentes, um serviço de amas-secas que mantém as crianças fora das ruas. (...)
No dia da visita do jornalista da revista Time, a turma estava a analisar uma historieta chamada “A Torta de Batata Doce”. A professora descreve a prova da torta de batata doce, de fiambre da perna, de couve. “O que é que estas coisas têm em comum?” pergunta a professora, desafiando o seu grupo de estudantes de 15 anos. “Não querem saber se aprendemos”, responde astutamente um rapazinho. “O importante é passar.”
Poder-se-ia argumentar que, contrariamente aos pais do condado de Rockdale, os educadores de Webster Groves têm uma boa desculpa para a sua demissão. Os responsáveis estaduais pela educação afirmaram considerar que ensinar os alunos era uma tarefa secundária do educador. A sua tarefa principal consistia em erradicar o abandono escolar que converte a criança numa ameaça social. O Estado do Missouri atribui gratificações às escolas que conseguiram reduzir a taxa de abandono. No caso de Webster Groves, isto representava 150 000 dólares, um montante irresistível quando comparado ao défice do liceu: 1,2 milhões de dólares. No entanto, este dinheiro também dá aos alunos a oportunidade de fazerem uma chantagem com os professores. O bónus de frequência, além de condenar os professores a baixarem o nível do currículo – “se prometer não exigir que leiamos obras acima do nono ano, prometemos ficar na escola” é o negócio subjacente – também os incapacita de exigirem disciplina, além de infracções mais perigosas. Os estudantes podem insultar os professores e chegar atrasados sem sofrer consequências; os professores já sabem que a direcção não os pode apoiar muito.
A maior parte do corpo docente também já deixou de pedir mais do que 15 minutos de trabalhos de casa por dia. Uma professora calcula que apenas 15 por cento dos alunos fazem os trabalhos de casa. As crianças dizem que estudam entre 10 e 30 minutos, no máximo. (“Aqui estão em segurança e podem aprender durante as aulas, mesmo que não façam os trabalhos de casa”, explica um assistente do director). Os professores também dão poucos trabalhos de casa para que as crianças tenham muito tempo para se dedicarem àquilo que querem fazer prioritariamente: ganhar dinheiro. É comum para um estudante trabalhar 30 ou até 40 horas por semana num snack-bar ou numa loja de vídeos. A finalidade não é pôr dinheiro de lado para a universidade; o dinheiro serve para comprar casacos de cabedal de 400 dólares, e carros cool. Nada na educação deles põe em causa um tal comportamento.
Em Webster Groves, como em Rockdale, os adultos – que abdicaram de qualquer assomo de autoridade que, normalmente, investe os que são mais experientes e perspicazes –tentam disfarçar a sua negligência alegando que são amigos e colegas dos seus subordinados. O artigo da revista Time começa com a chegada muito matinal da directora para um treino físico. A sua T-shirt com o Pateta e a sua roupa em geral dão uma boa ideia daquilo que iremos descobrir. Dois professores fazem frequentemente partidas, como aspergir os alunos com pistolas de água do telhado do liceu, uma brincadeira que levou a vizinhança, aterrorizada porque só via as sombras, a chamar a polícia. Na semana em que a revista Time visitou a escola, os dois treparam novamente ao telhado da escola, mas desta vez foi para fazerem baloiçar a cabeça de um manequim-mulher que baptizaram de Headrietta, ao nível da janela duma turma, de tal forma que arrancaram gritos histéricos às estudantes. A revista Time comenta, acerca de um dos dois brincalhões: “É complicado determinar se Yates, professor de Astronomia e de Física, que também preside ao departamento de Ciências, faz realmente parte do corpo docente ou se ainda é uma criança.” Os tremendos esforços de Yates para manter um relacionamento amigável nem sempre funcionam. Os seus alunos continuam a aborrecê-lo e a chamá-lo “asshole”, um comportamento que, segundo a análise autoconfiante de Yates, prova que os alunos estão “à vontade” com ele.
Ainda que extrema, a evasão de Yates reflecte a maneira como os adultos actuais se convencem de que estão bem com as crianças. Desde que as crianças permaneçam na escola, desde que a sua auto-estima não fique ameaçada, desde que a relação de amizade adulto-criança pareça relativamente serena, então podem-se convencer de que têm um “bom relacionamento com as crianças.” De facto, os autores de “Uma Semana na Vida” descrevem os educadores de Webster Groves como adultos atentos que concedem tempo extra para os jogos de futebol da escola, que participam em jogos de softball para alunos-professores, que também se disponibilizam para apoiar um adolescente que acaba de perder a mãe, ou outro cujos pais se estão a divorciar.
No entanto, nada daquilo consegue preencher o vazio deixado pelos seus erros e, sem dúvida, também pelos erros da maioria dos pais dos seus alunos, nada é feito para que tenham uma visão de uma ordem moral e intelectual coerente. Uma das principais tarefas dos educadores de Webster Groves consiste em gerir a decadência engendrada pela sua própria abdicação. Apesar de a escola não estar equipada com guardas e detectores de metal, a directora, as suas assistentes e ainda um detective privado deambulam pelos corredores da escola com walkie-talkies. Os funcionários mandaram instalar um dispendioso equipamento de detecção no sistema telefónico da escola depois de um alerta à bomba no ano transacto. O corpo docente frequenta seminários de gestão de crises para encontrar respostas para emergências hipotéticas. A escola está atenta às numerosas crianças medicadas e os professores estão atentos àqueles que perdem subitamente o interesse ou cujas notas baixam.
Erik Erikson definiu a idade adulta como um período de criatividade, no qual a maturidade alimenta os jovens vulneráveis e os prepara para uma vida independente. As reportagens de Frontline e da revista Time levam a pensar que, em muitas partes dos Estados Unidos, uma tal idade adulta desapareceu. Os adultos não têm estímulos culturais significativos que possam alimentar a imaginação vazia dos filhos, não têm nada que os possa ajudar a ordenar as suas vidas caóticas, informes. Para as crianças da classe média, uma geração mais rica do que qualquer outra na história da humanidade, a situação é lúgubre. Estão à procura do sentido da humanidade, e encontram adultos a olhar fixamente para o chão. O que basta para enlouquecer algumas crianças.


Kay S. Hymowitz

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