quinta-feira, 5 de julho de 2007

* Como viver a dois permanecendo diferentes


Da fusão à diferenciação


— Para se passar do um para o três, será necessário aceitar, em primeiro lugar, a passagem do um para o dois, tendo a ousadia de abandonar a fase idílica da fusão ou simbiose. Essas sequências da vida conjugal traduzem-se, muitas vezes, pela utilização privilegiada das fórmulas “a gente” e “nós” que englobam os cônjuges nesse espaço fechado da ilusão de serem semelhantes.

“Gostamos de Mozart.”
“Somos felizes por viver juntos.”
“Gostaríamos de ter filhos.”
“Queremos morar no interior.”
“Nós estamos sempre de acordo no que diz respeito ao essencial...”

Será que esse “nós” são verdadeiramente autênticos e cúmplices?

Não será que um certo número deles são portadores de um risco de amálgama e colusão que ameaça os desejos diferenciados de cada um e que os leva a não serem ouvidos, nem satisfeitos, nem mesmo simplesmente respeitados em unicidade?


Muitas vezes, isso acontece perante a maior cegueira dos protagonistas, que colaboram, cada qual à sua maneira, nesse sistema de indiferenciação.

Essa fase de fusão apoia-se essencialmente na falta de posicionamento personalizado de um dos parceiros, em benefício da evocação de uma entidade fictícia: “o casal indiferenciado” ou “o casal sintonizado com” a posição dominante de um... sobre o outro.

“Estamos sempre de acordo, nunca discutimos; aliás, de que serve discutir quando queremos viver felizes juntos?”

Cada parceiro tende a limar as arestas da sua personalidade em função do que supõe ser o desejo do outro. A adaptação mútua leva cada um a amplificar e a reforçar as características ou traços que parecem convir ao outro ou ser valorizados por ele.

Inversamente, cada qual terá tendência para atenuar, eliminar, até mesmo dissimular as manifestações ou aspectos percebidos como susceptíveis de desagradar ao outro, ou de estar na origem da colocação em evidência das suas diferenças. É assim que alguns parceiros acabam por se tornar semelhantes nas suas atitudes, físico e linguagem.

Cada um dos protagonistas está persuadido de que conhece as possibilidades, desejos e necessidades do outro e de que é possível identificar-se com eles. Cada um faz ou vive em lugar do outro. Renuncia a satisfazer e, até mesmo, a exprimir os seus próprios prazeres ou demandas. Muito rapidamente, sem que os interessados estejam ao corrente, as posições imobilizam-se, instalam-se, estruturam-se sob uma forma repetitiva e, muitas vezes, num único sentido.

A ilusão de uma semelhança entre os dois parceiros faz com que a comunicação verbal seja pouco valorizada.

“Quanto a nós, compreendemo-nos imediatamente; não temos necessidade de falar.”
“Apenas pelo seu aspecto, adivinho o que vai dizer...”
“A gente nunca tem problemas de comunicação como acontece com tantos casais; não temos necessidade de falar um com o outro...”

Inútil exprimir desejos que, supostamente, serão adivinhados pelo outro! A longo prazo, tais desejos correm o grande risco de não serem satisfeitos, e de, um dia, se manifestarem sob a forma de censuras e acusações porque, justamente, permaneceram durante muito tempo confinados no implícito.

Aquele executivo sincero, cortês, terno e dedicado em muitos aspectos à sua companheira, não tem consciência de que passa o tempo a dizer-lhe o que ela deve fazer.

Muito cedo na sua relação, comportou-se como quem sabia o que era bom para ela e para si, para eles e para a família da qual era o chefe.

“Vamo-nos casar depois de terminar os nossos estudos; poderás trabalhar mesmo tendo filhos, porque haverá alguém para tomar conta deles.
É preferível mesmo assim viver no interior, já que temos meios para isso: espero que estejas de acordo!
Vamos fazer a mudança no início do ano escolar, porque o posto que me foi oferecido é mais interessante, não te preocupes... Irei à frente para abrir caminho e depois virás ao meu encontro. Tentarei encontrar trabalho para ti e um bom posto num sector ao lado do meu. Vais ver que não haverá problemas… Pensei em tudo...”

E, assim, durante doze anos, “não haverá problemas” ou “pensei em tudo” (eram as alcunhas que ela lhe deu alguns anos após o casamento) resolveu efectivamente todos os problemas do casal... sem óbice aparente e com a colaboração aparentemente indefectível da sua mulher.

Até ao dia em que ele fez o seguinte anúncio:

“Fui escolhido para trabalhar na Coreia, como responsável pelo projecto do TGV; partiremos em Outubro, teremos... de prever... e tu poderás...”

Seguia-se uma longa lista de tarefas das quais tinha a responsabilidade e pretendia resolver “sem problemas” para o bem-estar da mulher e da família.

Nesse dia, descobriu com estupefacção uma mulher desconhecida que já não entrava no seu sistema relacional e que deu a seguinte resposta:

— Talvez pretendas mudar de novo; mas não é a minha intenção, nem a das crianças. Fico em Orleães, sinto-me bem no meu trabalho e nesta cidade, que começa a tornar-se um pouco a minha cidade. As crianças estão a criar uma estabilidade, fizeram relações importantes para elas. Comecei um curso de dança e tenho amigas de quem eu gosto...
— Então queres divorciar-te? — gritou ele com uma certa moderação.
— Não propriamente divorciar-me, mas somente dizer que, desta vez, não quero mudar. Estou saturada, tenho necessidade de respeitar o meu próprio ritmo!
— Isso quer dizer, então, que já não me amas?
— Não é isso o que estou a dizer. Estou simplesmente a tentar sublinhar que já não aceito que me digas o que tenho de fazer...

Estourou uma crise sem mudanças essenciais.

Ele tolerava a decisão da mulher, mas procurava incessantemente desestabilizá-la nas suas posições. Aproveitava todas as ocasiões! Por meio de múltiplas pressões, chantagens ou ameaças, tentava levá-la a voltar ao modo relacional anterior.

Quanto a ela, agarrava-se ao seu projecto de vida e conservava a esperança de que ele “compreenderia”, mudaria de opinião e acabaria por renunciar a trabalhar no estrangeiro.

Ela chegou até a afirmar: “Tinha a ingenuidade de acreditar que ele viesse a escolher- me.”

Aquela crise durou vários anos até chegar a uma ruptura, ao mesmo tempo conflituosa e libertadora para ambos. No entanto, mesmo após o divórcio, ele ainda voltava a telefonar-lhe para continuar a ditar, na secretária electrónica, com todos os pormenores, qual seria o tipo de férias desejáveis ou não para ela... que posto de trabalho deveria aceitar...

Esse período da vida relacional de um casal no qual domina a utilização da fórmula “a gente” pode durar anos e, até mesmo, décadas.

Num prazo mais ou menos longo, será sancionado pela descoberta mais ou menos brutal ou progressiva de que um dos parceiros não se sente satisfeito com essa forma de indiferenciação e amálgama que o deixa confinado e reduzido.

Acabará por rebentar, então, uma crise, muitas vezes, dolorosa, emocionante ou angustiante, quando um dos cônjuges começar a ganhar autonomia, a diferenciar-se, a mostrar-se diferente. Será o início de uma nova etapa da vida conjugal: a do casal diferenciado.

Uma outra mulher irá descobrir lentamente, primeiro com amargura e depois de forma positiva, que tinha desejos e projectos bem pessoais. Irá descobrir que permanecer fiel a si mesma não é necessariamente ser infiel ao companheiro.

Tal posicionamento mais diferenciado implicará uma concentração maior da pessoa sobre si mesma.

Nesse momento, o eixo do casal orienta-se para um dos cônjuges. E se as hemorragias relacionais, as tensões, as rivalidades, as oposições, não os tornarem demasiado frágeis, seguir- se-á um período de melhores partilhas e de uma abertura mais real de um para o outro.

Para passar da fase da fusão ou simbiose – que, muitas vezes, caracteriza os primeiros tempos da vida amorosa – para a fase da diferenciação, não basta tomar consciência ou estar vigilante, mas será necessário que cada um se defina de forma concreta e lúcida. Não será fácil correr o risco de se posicionar como portador de desejos, ideias, sentimentos e projectos diferentes das propostas apresentadas pelo outro.

No entanto, se aceitarmos considerar que um relacionamento tem duas extremidades e que é vital que cada um se responsabilize pela sua, vamos descobrir que somos nós que produzimos os sentimentos que, por vezes, nos fazem sofrer tanto; além disso, é através deles que tentamos não só exercer uma pressão sobre o nosso companheiro através do sentimento de culpa, desvalorização ou chantagem afectiva, mas também desvalorizar-nos e desqualificar-nos.

É raro que essa maneira de ver seja aceite de imediato e facilmente por aquele que vive... as consequências da mudança do outro. Seguem-se, por vezes, reacções arcaicas, até mesmo narcísicas e desproporcionadas, porque o que é ferido ou atingido escapa à consciência imediata daquele que, antes de tudo, vive tal situação como uma injustiça ou sismo imprevisto e incompreensível.

O paradoxo relacional decorrente daí é o seguinte: o mais atingido nas suas esferas mais infantis e profundas irá fazer uma acusação exagerada, amarga e sincera... contra o outro.

Na maior parte dos actos da vida quotidiana, tudo parece tornar-se um problema. Essa cristalização intensa e repentina das energias defensivas ou de afirmação abre uma fase duplamente conflituante: a de um inter-conflito com o parceiro e a de um intra-conflito no mais profundo de si mesmo. Poderá ser acompanhada pela vontade de desistir, de deixar que o outro tome as decisões ou de voltar a uma fase na qual “apesar de tudo, era mais simples, menos perigoso, mais descontraído”.

Além dos pequenos mal-entendidos, prazeres e incidentes ligados à gestão da vida quotidiana, além dos ajustamentos ou confrontos inevitáveis que balizam o início da vida de um casal, a primeira crise fundamental que abalará os alicerces de identidade de cada um encontra a sua origem nesta interrogação: Como passar do “nós” e do “a gente” para um “eu” personalizado? Para alguns, a emergência desse “eu” parece ser de tal forma nova, inadequada e ameaçadora, que será rejeitada, repudiada, desqualificada e, até mesmo, negada.

Ela corre o risco de ser vivida como sinal ou prova de abandono, não-amor ou rejeição antecipada por aquele que procura ganhar segurança ao pretender permanecer no “nós” do casal asséptico. O parceiro que pretender manter a fusão e a indiferenciação na relação conjugal não suportará a irrupção desse eu que coloca em questão tantos mitos e obriga a um verdadeiro reposicionamento relacional dos desejos, projectos, hábitos e modos de vida. E isto acontece com ambos.

Aquele ou aquela que pretender permanecer no casulo ou perder-se no casal indiferenciado vai resistir e lutar para impedir o casal de ter acesso à fase da diferenciação. Tal passagem encontrará muitos obstáculos pelo caminho.

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Se aceito atravessar as duas crises mais difíceis da vida conjugal, a saber:

* a possibilidade de passar de um para três (das fórmulas “nós” e “a gente” demasiado fusionais para um “eu” diferenciado do “eu” do outro: Eu + Eu);
* a descoberta de que somos sempre três: o outro, eu e o relacionamento que existe entre nós...
Então, tenho algumas possibilidades de permanecer numa relação viva, não só com o outro, mas também comigo mesmo.

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Equilíbrio das forças de expansão ou de retraimento


As forças de coesão e de dispersão no casal estão intimamente misturadas, próximas e interdependentes umas das outras.

O equilíbrio deverá apoiar-se numa dosagem entre forças de coesão e forças de dispersão.

Ambas as forças são necessárias e contribuem para alimentar as forças de vida do casal.

Uma prevalência demasiado grande das forças de coesão ameaçaria conduzir os cônjuges e o seu relacionamento a uma forma de petrificação ou fossilização.

A rigidez mortífera ou mumificada de alguns relacionamentos é trágica porque a vida está ausente delas.

Por sua vez, as forças de dispersão ou dissociação, ao mesmo tempo que favorecem a autonomia de cada um dos membros, contribuem para manter o casal vivo e ajudam-no a atravessar as crises associadas à sua evolução. O equilíbrio das forças será reforçado ou enfraquecido conforme forem ou não respeitadas algumas regras de base da higiene relacional.

Formulei tais princípios numa declaração dos direitos do homem e da mulher ao amor que, em meu entender, se impõem como uma evidência.


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De todas as estratégias que os casais utilizam para não terem de enfrentar os seus problemas, ao mesmo tempo que se encaminham para eles por vias distorcidas, aquela que parece ser a mais popular é a ligação extraconjugal. Trata-se de uma tentativa desesperada do casal para sair do impasse que o conduz à beira do desastre ou, até mesmo, ao próprio desastre.

Carl Whitaker e Auguste Napier

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Nada é mais maravilhoso e miraculoso do que
uma relação conjugal na qual cada um dos
cônjuges encontra espaço para crescer, sentir-se
inteiro, reconhecido, engrandecido, amplificado pela escuta ou olhar do companheiro, pela sua presença, pela sua confirmação ou pelas suas interrogações! Um espaço no qual cada um experimenta a possibilidade de se exprimir e de ser ouvido! Haverá alguma coisa mais estimulante do que construir tal relacionamento?

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Declaração dos direitos ao amor do homem e da mulher (prolongamento)

* Amar-te sem te submeter
* Cativar-te sem te prender
* Acolher-te sem te reter
* Dar-te os meus presentes sem me esvaziar
* Sorrir-te e enternecer-me
* Ficar encantado e abandonar-me à fluidez do impulso, ao uníssono da partilha, à felicidade de sonhar o futuro
* E permanecer, assim, vivo e livre, engrandecido na abertura às possibilidades dos nossos encontros
* Sentir-me, assim, reconciliado, unificado, prolongado nos entusiasmos da nossa vida em comum.



Reflexões sobre o casamento

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